É sempre garantido o prazer que experimentamos quando
retornamos a um bom livro, lido décadas atrás. A perspectiva do tempo
geralmente nos faz considerar com outros olhos os fragmentos que retivemos do
que foi lido no passado e que, pouco a pouco, fomos filtrando e insensivelmente
até modificando, pelos mecanismos misteriosos da nossa memória. Algumas ideias
se confirmam, com a releitura, outras se modificam ou se esclarecem melhor.
Reler um bom livro é uma forma de reviver o passado, de retornar à juventude.
Estou relendo o clássico livro de Memórias de Alfredo
d´Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay (1843-1899), na edição de 1946, da
Melhoramentos. Foi essa, precisamente, a mesma edição lida na minha já distante
juventude.
Um fato narrado nessa obra que muito me marcou, quando o
li, e que diversas vezes tive ocasião de relatar a amigos ou a alunos, desejo
aqui deixar registrado. Nos tempos atuais, em que a corrupção parece tão
endêmica e tão entranhada no Brasil republicano, é oportuno fazê-lo.
Conta o autor que, sendo ainda bem jovem, certo dia se
aproximou dele um amigo de família, político influente e membro do governo, e
lhe disse:
- Se você quiser ganhar bastante dinheiro, aplique todas
as suas economias comprando ações de tal Companhia (e citou o nome de uma bem
conhecida companhia de transportes coletivos no Rio de Janeiro). Ouça o que eu
lhe digo: dentro de poucos dias as ações dessa Companhia vão subir como um
rojão. Não me pergunte por quê... mas siga meu conselho e não se arrependerá.
Taunay não seguiu o conselho. Ainda era jovem demais,
explicou ele, para se interessar por esse tipo de especulações. Mas teve a
curiosidade de, pelos jornais, acompanhar a cotação das ações da tal companhia,
para ver se se confirmava o prognóstico do bem informado ministro.
Mas deu tudo para trás...
As ações não apenas não dispararam para cima, mas
começaram a cair, e os possuidores de tais ações tiveram consideráveis
prejuízos.
Algumas semanas depois, Taunay encontrou o amigo numa das
ruas centrais do Rio, e não perdeu a ocasião para o interpelar:
- Ainda bem que não segui seu conselho! Se tivesse feito
essa bobagem, teria perdido dinheiro. Como é que o Sr. me deu um conselho
desastrado desses?
- O que que você quer? - respondeu o ministro - deu tudo
para trás por causa do Imperador...
E aí explicou tudo. A tal Companhia, que não estava muito
sólida financeiramente, tinha uma concessão de serviço público. Faltavam ainda
uns poucos anos para vencer o prazo da concessão. Os membros do Governo, que
eram amigos dos donos da companhia, queriam salvá-la, e haviam deliberado
prolongar o prazo da concessão por um período bem longo, sem que a companhia
oferecesse nada em troca desse favorecimento. Era de se prever que, uma vez
divulgada pela imprensa essa extensão do prazo, imediatamente as ações da
companhia teriam uma valorização muito grande. Acorreriam novos acionistas com
capitais e a companhia “emproblemada” sairia das dificuldades.
Os ministros, jeitosamente, lavraram um decreto redigido
de modo a disfarçar o favoritismo, dando a impressão de que a prorrogação do
prazo correspondia ao interesse público. O decreto ficou pronto e foi assinado
pelo Ministro da pasta correspondente. Estava tudo certo... Faltava apenas a
mera rubrica do Imperador.
Pois foi na hora da rubrica do Imperador que tudo deu
para trás!
O Imperador estranhou que se pretendesse prolongar o
prazo de uma concessão anos antes de terminar o prazo vigente. E sobretudo
estranhou que se pretendesse fazer aquilo por meio de decreto governamental,
sem licitação pública que apurasse se alguma outra empresa não poderia prestar
os mesmos serviços em condições mais convenientes para os cofres públicos e
para a população.
- E ele nos olhou tão seriamente que nem ousamos insistir
- concluiu o ministro.
Bons tempos aqueles, em que a moralidade administrativa
tinha um vigilante como D. Pedro II...
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