Páginas

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Relendo Taunay

Armando Alexandre dos Santos
Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado


É sempre garantido o prazer que experimentamos quando retornamos a um bom livro, lido décadas atrás. A perspectiva do tempo geralmente nos faz considerar com outros olhos os fragmentos que retivemos do que foi lido no passado e que, pouco a pouco, fomos filtrando e insensivelmente até modificando, pelos mecanismos misteriosos da nossa memória. Algumas ideias se confirmam, com a releitura, outras se modificam ou se esclarecem melhor. Reler um bom livro é uma forma de reviver o passado, de retornar à juventude.
Estou relendo o clássico livro de Memórias de Alfredo d´Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay (1843-1899), na edição de 1946, da Melhoramentos. Foi essa, precisamente, a mesma edição lida na minha já distante juventude.
Um fato narrado nessa obra que muito me marcou, quando o li, e que diversas vezes tive ocasião de relatar a amigos ou a alunos, desejo aqui deixar registrado. Nos tempos atuais, em que a corrupção parece tão endêmica e tão entranhada no Brasil republicano, é oportuno fazê-lo.
Conta o autor que, sendo ainda bem jovem, certo dia se aproximou dele um amigo de família, político influente e membro do governo, e lhe disse:
- Se você quiser ganhar bastante dinheiro, aplique todas as suas economias comprando ações de tal Companhia (e citou o nome de uma bem conhecida companhia de transportes coletivos no Rio de Janeiro). Ouça o que eu lhe digo: dentro de poucos dias as ações dessa Companhia vão subir como um rojão. Não me pergunte por quê... mas siga meu conselho e não se arrependerá.
Taunay não seguiu o conselho. Ainda era jovem demais, explicou ele, para se interessar por esse tipo de especulações. Mas teve a curiosidade de, pelos jornais, acompanhar a cotação das ações da tal companhia, para ver se se confirmava o prognóstico do bem informado ministro.
Mas deu tudo para trás...
As ações não apenas não dispararam para cima, mas começaram a cair, e os possuidores de tais ações tiveram consideráveis prejuízos.
Algumas semanas depois, Taunay encontrou o amigo numa das ruas centrais do Rio, e não perdeu a ocasião para o interpelar:
- Ainda bem que não segui seu conselho! Se tivesse feito essa bobagem, teria perdido dinheiro. Como é que o Sr. me deu um conselho desastrado desses?
- O que que você quer? - respondeu o ministro - deu tudo para trás por causa do Imperador...
E aí explicou tudo. A tal Companhia, que não estava muito sólida financeiramente, tinha uma concessão de serviço público. Faltavam ainda uns poucos anos para vencer o prazo da concessão. Os membros do Governo, que eram amigos dos donos da companhia, queriam salvá-la, e haviam deliberado prolongar o prazo da concessão por um período bem longo, sem que a companhia oferecesse nada em troca desse favorecimento. Era de se prever que, uma vez divulgada pela imprensa essa extensão do prazo, imediatamente as ações da companhia teriam uma valorização muito grande. Acorreriam novos acionistas com capitais e a companhia “emproblemada” sairia das dificuldades.
Os ministros, jeitosamente, lavraram um decreto redigido de modo a disfarçar o favoritismo, dando a impressão de que a prorrogação do prazo correspondia ao interesse público. O decreto ficou pronto e foi assinado pelo Ministro da pasta correspondente. Estava tudo certo... Faltava apenas a mera rubrica do Imperador.
Pois foi na hora da rubrica do Imperador que tudo deu para trás!
O Imperador estranhou que se pretendesse prolongar o prazo de uma concessão anos antes de terminar o prazo vigente. E sobretudo estranhou que se pretendesse fazer aquilo por meio de decreto governamental, sem licitação pública que apurasse se alguma outra empresa não poderia prestar os mesmos serviços em condições mais convenientes para os cofres públicos e para a população.
- E ele nos olhou tão seriamente que nem ousamos insistir - concluiu o ministro.
Bons tempos aqueles, em que a moralidade administrativa tinha um vigilante como D. Pedro II...

Nenhum comentário:

Postar um comentário