Assisti mais uma vez, pela terceira
ou quarta vez, o filme Guerra de Canudos - uma produção de Mariza Leão, sob a direção
de Sérgio Rezende, com a participação de Cláudia Abreu, Paulo Betti, Marieta
Severo e José Wilker no corpo de atores.
Trata-se de um épico, filmado no Ceará,
em local que lembra realmente a região baiana de Canudos, onde realmente
ocorreu a guerra. Conheço bem a região de Canudos, pois lá estive em duas
ocasiões, e realmente posso atestar que a região do filme se lhe assemelhava.
Do ponto de vista dos recursos técnicos,
é uma produção muito acima da média do cinema brasileiro. São mais de cinco mil
os figurantes, o que, para um filme brasileiro, é muito. Naturalmente, nem de
longe pode comparar-se a similares produções norte-americanas, mas,
sinceramente, desse ponto de vista Guerra de Canudos não desempenha papel feio.
Os artistas são, de modo geral, bons, merecendo destaque, a meu ver, Marieta
Severo, uma quase perfeita "jagunça". Só não convencia pelas
sobrancelhas bem delineadas, que denunciavam a mulher moderna...
O pior ator, a meu ver, foi José Wilker,
que contrariando a verdade histórica representou um Antônio Conselheiro louco e
alumbrado. Hoje, com os manuscritos do Conselheiro publicados em fac-símile por
Ataliba Nogueira, sabe-se que o Conselheiro, na realidade, era um homem
cultivado, de muita leitura, com redação elegante, com conhecimentos de francês
e de latim, arquiteto prático com muitas obras realizadas, rábula de sucesso.
Sua figura caricatural, debuxada por Euclides da Cunha e representada de modo
excessivamente forçado e até grotesco por Wilker, não corresponde em nada à
verdade histórica.
Do ponto de vista dos trajes e do
armamento, confesso que não encontrei anacronismos, embora os tenha procurado
com muito cuidado. Já na linguagem dos figurantes, anacronismos e anatopismos havia,
e não poucos.
Na minha primeira viagem a Canudos, em
janeiro/fevereiro de 2001, visitei o museu histórico da Nova Canudos, cidade
erigida em 1969, quando a primitiva Canudos, cujas ruínas tive ocasião de
explorar, ficou submersa pelas águas do rio Vasa-Barris, represadas no
gigantesco Açude de Cocorobó. No museu, assisti a um longo documentário que,
infelizmente, não mais consegui encontrar, com os bastidores da filmagem de
Guerra de Canudos. Esse documentário, a meu ver, deveria ser incluído no DVD do
filme, pois contém informações da maior utilidade para o estudioso.
Cheguei a conversar longamente, num
Congresso de História da Bahia, realizado em Salvador, com o famoso Prof. José
Calazans, o maior e mais profundo conhecedor do assunto Canudos, o primeiro
pesquisador que foi, pessoalmente, entrevistar remanescentes da luta e
interpretou a realidade canudense como ela era, não a pintando com as cores das
sucessivas ideologias da moda. Não caiu no erro de Euclides, que analisou a
guerra numa ótica positivista e de fanatismo republicano, como tampouco caiu no
erro de alguns intérpretes modernos, que querem atribuir ao Arraial de Canudos
uma ideologia de esquerda, gênero MST... Nada disso! Canudos deve ser
entendida, acima de tudo, como um movimento cultural único, sem paralelos
conhecidos para servirem de pontos de referência. A ameaça monarquista de
Canudos, pretensamente armado e municiado pela Princesa Isabel e pelo Conde
d'Eu (sic!) também não tinha a menor realidade. Foi um espantalho erguido pelo
governo republicano para assegurar apoio da opinião pública. Tão orquestrada e
unânime foi a grita da imprensa contra Canudos, que até o monarquista Afonso
Celso, filho do Visconde de Ouro Preto (último Presidente do Conselho de
Ministros do Império) afirmou que, se em vez de república o Brasil fosse
monarquia, seria preciso extirpar o câncer de Canudos. "Estivéssemos nós
no poder, disse ele, procederíamos exatamente do mesmo modo como agiu o governo
republicano".
Na minha segunda viagem a Canudos, em
novembro/dezembro de 2001, fui numa equipe da Universidade do Estado da Bahia,
dirigida pelo Prof. Dr. Edivaldo Boaventura, fundador dessa universidade e
criador do Parque Nacional de Canudos. Conosco estavam também o historiador
português D. Marcus de Noronha da Costa, da Academia Portuguesa da História, e
sua esposa D. Beatriz. Da equipe da UEB fazia parte o historiador Luiz Paulo de
Almeida Neiva, que juntamente com o arqueólogo Paulo Zarattini estava fazendo
escavações arqueológicas. A meta de Neiva era encontrar a ossada de Antônio Conselheiro e, depois de autenticada pelo exame de DNA
(comparado com o de parentes seus que, segundo Neiva informou, já tinham sido
localizados em Quixeramobim, no Ceará), colocá-la numa herma em sua homenagem,
em Canudos. Seria uma reparação condigna a sua figura ilustre e injustiçada.
Infelizmente, isso não chegou a ser
feito. Depois de mais de 5 anos de seca, no início de 2002 choveu
torrencialmente na região durante um mês inteiro. O rio Vasa-Barris, que no
tempo da Guerra tinha 100m de largura, e que eu atravessei várias vezes, na
minha segunda viagem, a pés enxutos, voltou a encher. A represa de Cocorobó,
que a prolongada seca reduzira a algumas poças de água barrenta, voltou
rapidamente a suas dimensões normais. E as ruínas de Canudos voltaram a ficar 23 metros abaixo do nível
da água...
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