Agonia
e Êxtase
(1965) é um filme clássico,
extremamente bem feito, no qual figuram dois grandes e premiados atores,
Charlton Heston (o que fez também o papel de Ben-Hur e de El-Cid) e Rex
Harrison (o que representou o Professor Higgins, em My Fair Lady). Em Agonia e
Êxtase, Heston fez o papel de Michelangelo, e Harrison, o do Papa Júlio II.
O choque das fortes mentalidades dos dois homens é magnificamente bem
interpretado no filme, com um cenário e um figurino de primeiríssimo nível.
Quanto aos cenários, ao figurino, à
ambientação, é sem dúvida um filme grandioso, se bem que alguns pequenos
anacronismos nele aparecem de permeio. Exemplo de anacronismo: pareceu-me um
tanto deslocado o escândalo provocado por certas figuras nuas ou quase tanto na
pintura da Capela Sistina, realçado no filme. Pelos costumes da época, a utilização
de nus artísticos era então generalizadíssima e não poderia provocar o
escândalo da forma apontada pelo filme.
Agonia
e Êxtase
retrata muito bem aquela fase de inegável decadência religiosa, na qual o
elemento humano e pecador da Igreja Católica adquiriu um realce desmedido,
fazendo sombra a seu elemento divino, espiritual e santo.
Como diria, séculos depois, o
historiador Ludwig von Pastor, autor de uma monumental História dos Papas da
Renascença, a Igreja Católica provou ser realmente de instituição divina, pois
nem os Papas conseguiram destruí-la, por mais que tentassem...
Quem não toma em consideração esse duplo
aspecto da Igreja Católica - de um lado sua natureza espiritual e divina, pura
e santa, de outro seu elemento humano, cheio de misérias, defeitos e até crimes
- muito facilmente perde a perspectiva adequada para julgá-la na História.
Na Idade Média, entendia-se a arte como
a expressão da beleza, e o belo se definia como o esplendor do bem, ou da
bondade (splendor bonitatis). Tudo isso, numa ótica teocêntrica, em que o homem
se postava numa posição secundária. Deus era o sumo Bem e a suma Beleza. Todas
as formas de representação de belezas artísticas se ordenavam a Deus. Nesse
contexto, o belo era um fim em si, pois remetia diretamente a Deus, que era a
suma Beleza.
Como o elemento humano era deixado em
segundo plano na Idade Média, muitas obras-primas eram anônimas. Das catedrais,
por exemplo, quase nunca se sabe o nome dos projetistas e construtores. Tudo
era feito dentro de um espírito religioso, muitas vezes até mesmo como
penitência por crimes e pecados, tudo se fazia de modo a centrar o foco das
atenções em Deus.
Já com a Renascença, deu-se uma
verdadeira reviravolta nessa ordenação medieval. Entrou em cena o
antropocentrismo. O Homem, e não mais Deus, passou a ser o centro das atenções.
Do ponto de vista formal, não se chegou imediatamente ao ateísmo; mas, na ordem
concreta dos fatos, Deus foi cada vez mais se tornando elemento secundário. O
Homem era o centro de tudo.
A gigantesca reviravolta assim
constituída na passagem da Idade Média para a Renascença foi muito bem expressa
pelo filósofo francês Etienne Gilson: “A diferença entre o Renascimento e a
Idade Média não foi uma diferença produzida por adição, mas por subtração. O Renascimento,
tal qual nos foi descrito, não foi a Idade Média mais o homem, mas a Idade
Média menos Deus, e o que houve aí de trágico, foi que, ao perder Deus, o
Renascimento perdeu o próprio homem.” Essa observação lapidar de Gilson foi
transcrita numa das questões do exame do ENAD, de História, em 2005.
Dentro do contexto dos novos tempos, os
critérios estéticos tiveram importância fundamental. Houve todo um retorno a
padrões estéticos da Antiguidade. E sempre com o Homem no centro das coisas. E
aí duas figuras tomaram uma importância também nova: em primeiro lugar, o
artista, que passava a ser o autor reconhecido da sua obra, que não mais se
contentava com o anonimato humilde dos artistas medievais; e em segundo lugar,
o mecenas, que financiava o artista e em homenagem ao qual, pelo menos em
princípio, era feita a obra. Era sempre o homem que estava em foco, seja como
autor, seja como finalidade.
O filme mostra muito bem essa dicotomia,
entre o artista Michelângelo e o mecenas Júlio II, que queria decorar a capela
Sistina para, assim, perpetuar seu nome e o de um papa anterior, seu parente.
Um precisava do outro, um não podia viver sem o outro. Mas ambos em perpétuo
conflito, com seus egos poderosos sempre se chocando.
Postas as coisas como estavam, naquele
contexto, o mecenato era uma instituição inevitável. O mecenato também teve,
por parte da Igreja, certo caráter pastoral e apostólico. Entendia-se que, por
meio da beleza e da arte, era possível tocar os corações e, assim, aproximá-los
de Deus. O empenho de colocar a estética a serviço da fé seria, pouco mais
tarde, uma das características do estilo barroco, gerado pela Contra-Reforma.
No filme Agonia e Êxtase, porém, no meu modo de entender essa ideia
apostólica está quase inteiramente ausente, ficando mais focado o lado
antropocêntrico do problema: o conflito dos dois egos, o de Michelângelo -
desejoso de realizar plenamente sua concepção estética e, assim, imortalizar-se
como artista - e o de Júlio II, desejoso de engrandecer sua família e, assim, a
si mesmo.
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