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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O PORTAL

Cássio Camilo Almeida de Negri
Cadeira n° 20 - Patrono: Benedicto Evangelista da Costa

            Deitado no leito branco do hospital estava o mendigo recém atropelado. Fora encontrado um dia antes, na madrugada, estendido na estrada deserta em meio a uma poça de sangue já coagulado parcialmente.
            Barba por fazer há anos, com piolhos, cheirando sebo e suor acrescentado dos fétidos dejetos expelidos pós acidente pelo esfíncter relaxado devido a lesão neurológica decorrente do trauma craniano.
            Não podia movimentar-se, mas conseguia ver e raciocinar, quando os faróis dos carros se aproximavam do seu corpo inerte, desviando-se a um instante de novos atropelamentos.
             Assim ficou por toda a madrugada, pois quem iria socorrê-lo àquelas horas na estrada deserta?
 Os minutos se transformaram em horas, a madrugada foi longa e ali, sentia-se realmente o ser sem nada poder.
  Com o corpo em decúbito ventral, vistas para o leste, percebeu o sol nascer através dos olhos vidrados, que nem podia piscar. Percebeu a ambulância chegando, e agora ali, já barbeado e limpo no leito branco do hospital estava aprisionado no corpo pela lesão cerebral.
    O rosto virado para o teto com os olhos semi-ocluídos pelos dedos ternos da enfermeira.
            Pelos vãos das pálpebras via o teto. Lá em cima, num pequeno orifício junto ao lustre, um entra e sai de formiguinhas pretas. Suas lembranças reportam à infância quando a mente borboleteante em mil pensamentos se assenta no cimento vermelho da cozinha materna onde também havia um formigueiro. Brincava desenhando com o dedo um pequeno filete circular da água que escorria da pia, ao redor das formigas, que não podiam passar, ficando alvoroçadas, sem saber o que fazer.
           Lembra-se bem que um dia, uma delas resolveu ultrapassar a marca de água no vermelhão.                     Atravessou com facilidade e ganhou corajosamente a liberdade do outro lado do círculo.
Nesse dia pensou que todas tiveram medo e ficaram apavoradas, somente aquela, teve a visão de que no outro lado estava a liberdade.
Não sorriu, porque a lesão cerebral não permitiu. Pensou em sorrir, fechou o pouco do vão dos olhos que ainda restava, perdeu o medo, e atravessou o portal da vida, ganhando também  a liberdade.

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