Recordei, no
meu último artigo, alguns traços muito sumários do reinado de D. Maria I, que
reinou efetivamente de 1777 até 1792 e, depois de adoecer, permaneceu como
rainha titular até falecer no Rio de Janeiro, em 1816. A memória dessa soberana
foi recordada em lindíssima Missa, celebrada em São Paulo, no último dia 8 de
abril, na Igreja de Nossa Senhora do Brasil.
Citei, nesse
artigo, a obra clássica de Caetano Beirão, D.
Maria I – Subsídios para a revisão da história do seu reinado (4ª. ed.,
Lisboa, 1944). É, como disse, obra solidíssima, baseada em documentação
exaustiva. Transcrevo um parágrafo do capítulo em que o autor, após ter
analisado minuciosamente todos os aspectos do reinado de D. Maria, resume
quanto acabara de expor:
“Era excecionalmente favorável, se não
brilhante, a situação de Portugal, ao atingir seu termo [em 1792] o reinado
efetivo de D. Maria I. Enquanto convulsões internas, ameaças de guerra, dificuldades
econômicas e políticas flagelavam outros países, aqui, na pequena casa
lusitana, a vida decorria suavemente, alegremente, como numa grande família, em
que todos, desde o chefe ao último dos filhos, trabalhassem para o bem comum.
País nenhum precisava menos do que o nosso dos solavancos perigosos duma
revolução. Progredia-se em todos os ramos da atividade coletiva. Lançavam-se os
fundamentos das grandes escolas modernas, empreendiam-se múltiplas viagens de
exploração e de estudo aos nossos domínios ultramarinos e ao estrangeiro, procurava-se
disseminar o ensino e levá-lo às classes humildes da sociedade, abriam-se
estradas, melhorava-se o serviço dos correios, protegiam-se as indústrias
nacionais, inauguravam-se fábricas, aperfeiçoavam-se os serviços hospitalares
e, justamente no ano em que a Rainha deixou de governar dava-se começo às obras
do teatro de S. Carlos, belo monumento a atestar o grau de cultura de uma
época... A par destes progressos de vária ordem, procurava o governo de D.
Maria I facilitar o viver das camadas populares, não se limitando a ir ao
encontro das suas necessidades materiais, mas elevando-as e dignificando-as no
campo propriamente social” (op. cit., pp. 399-400).
Cabe agora
esclarecer um ponto, particularmente sensível no Brasil: o caso de Tiradentes.
D. Maria
respeitava, sempre, a autonomia dos juízes, que deviam julgar de acordo com a
legislação vigente. Essa era a obrigação deles. Não existia, na época, esse
verdadeiro delírio de “ativismo judiciário” que existe hoje, até no STF, de
julgadores pretenderem alterar e corrigir, a seu talante, o que está escrito de
modo muito claro na lei.
O que a Rainha
quase sempre fazia era, no caso de execuções capitais, exercer seu direito de
suspender a aplicação das penas. Era o chamado “direito de graça”. A vida do
condenado era salva, sendo-lhe aplicada a pena (geralmente de degredo)
imediatamente seguinte, na ordem das penalidades previstas nas Ordenações
Filipinas que continuavam em pleno vigor, em tudo quanto não haviam sido
alteradas pela “legislação extravagante”. A pena de degredo era bastante
branda, pois no local para o qual havia sido designado o degredado não ficava
preso, mas vivia solto, podendo exercer livremente sua profissão. Só não podia
afastar-se do local, durante o tempo do degredo. “Degredado em África”
significava poder transitar livremente pelos imensos domínios da África
Portuguesa”.
Era bem
conhecido o costume da rainha. Preso condenado à morte era, quase sempre,
indultado. No caso concreto da Inconfidência Mineira, a rainha, pouco informada
das particularidades da administração colonial, preferiu se antecipar ao juízo
e, antes mesmo de exarada a sentença, já fez saber aos julgadores qual era o
seu desejo: que nem mesmo os chefes da conjura fossem mortos. Mas deixou o
caso, como de praxe, a critério dos julgadores. Estes, influenciados pela
manifestação da bondade de D. Maria, condenaram 11 réus à morte e já indultaram
a 10; Tiradentes somente foi executado, por decisão dos julgadores, que diante
da situação concreta do Brasil, julgaram indispensável que houvesse, para
prevenir futuras sedições, pelo menos uma execução.
“Constituiu-se a alçada para os julgar, no
Rio de Janeiro. Por acórdão de 18 de abril de 1792, onze dos conspiradores
foram condenados a pena capital, Mas, com data de 15 de outubro de 1790, havia
a bondosa Maria I expedido uma carta régia dirigida ao chanceler, juiz da
alçada, na qual se ordenava que aos
próprios chefes da conjura a pena fosse reduzida a degredo, exceto quando tal
se tornasse absolutamente impossível. Em face do que, só o Tiradentes padeceu
morte na forca; os outros culpados foram degredados para África”. (op.
cit., p. 352).
Costuma-se
dizer, aqui, que Tiradentes foi executado “por ordem de D. Maria I”. A
realidade é um pouco diferente. Ele foi executado “em nome da D. Maria I”, mas
contrariamente à vontade e ao desejo dela.
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