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sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Reminiscências de Piracicaba


Antonio Carlos Fusatto

De repente... abri a janela de minha vida e deparei-me com o alvorecer de uma existência setuagenária.
No horizonte, nuvens doiradas pelo sol do dia nascido, uma brisa leve passeia pelas folhas das árvores embalando-as suavemente, a fragrância das flores no ar, incansáveis colibris em harmoniosa coreografia bailam de flor em flor, sobre a relva, intensa revoada de insetos e, tendo como fundo deste cenário, o azul cerúleo.
Neste devaneio, o pensamento vagueia pelo tempo e direciona a atenção ora para o passado ora para o presente, a alma estremece, vibra diante das recordações, a sensibilidade é mais forte que palavras e sons; traz-me à lembrança a piracema do caudaloso Piracicaba, cardumes de peixes tentando transpor o Salto, como brocados enfeitando o Véu da Noiva; a velha ponte do Mirante com passarela de madeira e, a guarita do guarda da Sorocabana, cheia de cestos e jacás de bambus, construídos entre uma passagem e outra da "Maria Fumaça", como forma de passatempo e reforço de salário; o jardim da ponte com suas frondosas árvores quase engolindo o coreto; as pescarias noturnas e escondidas, no Salto do Piracicamirim dentro da ESALQ; das chaminés do Engenho Central, soltando fumaças negras voluteando no ar; das cerâmicas da Rua do Porto, contrastando com a densa mata ciliar e harmonizando-se com a Vila dos Pescadores. Ouço: o inconfundível sino do bonde, tocado pelo cobrador a cada passagem recebida, o berrante ao longe anunciando a chegada de mais uma boiada com destino ao matadouro, as melodias das orquestras tocando nos Clubes Coronel Barbosa e Cristóvão Colombo. A Banda Marcial “Cel. F. F. da Costa” (Escola Industrial) com seu garboso uniforme e eclético repertório musical, arrancando aplausos e provocando emoções em todas as apresentações, e da qual tive a honra e felicidade de ser integrante. A orquestra “Pedrinho e sua Orquestra”, formada em sua maioria por músicos da Corporação Musical “União Operária”, presença constante em grandes bailes da região. As brincadeiras dançantes animadas pelos inesquecíveis conjuntos musicais da cidade: Os Megassons, Os Cambitos, Super Som Sete, dentre outros que me fogem à memória; o som ensurdecedor dos teares da Fábrica de Seda, na Vila Rezende, e da Fábrica Boyes, o apito do trem chegando às 22:00 horas na Estação da Paulista, a algazarra dos engraxates na Praça José Bonifácio – disputando possíveis clientes para engraxar os sapatos. Em todo alvorecer, a quebra do silêncio pelos garotos jornaleiros em frente a tipografia do Jornal, aguardando liberação para as entregas domiciliares. A alegria da garotada ora brincando nas águas do cristalino Itapeva, ora jogando futebol com bola de borracha, bolinhas de gude, rodando pião, corrida de pega-pega, batendo figurinhas, entre tantas outras brincadeiras.
As meninas, brincando de roda e cantando canções folclóricas - hoje quase totalmente esquecidas -, pulando corda, amarelinha, jogando porquinhos, brincando de casinha com bonecas e tantas outras.
De repente... volto ao presente: o velho Piracicaba, qual esqueleto leuquêmico, curvado sob o peso da poluição, carregando toneladas de resíduos.
O jardim da Ponte não mais existe, o negrume do asfalto contrastante com a alvura das edificações: todo o verde foi engolido... E a velha "Maria Fumaça"? O bonde? O troar das boiadas na ponte? O cheiro gostoso de melado de cana do Engenho Central? O bosque da Casa do Povoador, com seu murmurante regato? Os saraus dançantes com famosas orquestras e conjuntos musicais? O encontro da boemia nas madrugadas, no Bar Bola Sete? O Jardim da Cerveja com músicas ao vivo? E as românticas serenatas?
Das cerâmicas da Rua do Porto, somente altivas chaminés persistem no tempo, como dedos da natureza em riste, denunciando o homem por suas agressões nefastas à natureza.
O Jardim da Cerveja cedeu espaço para o glorioso Cursinho “Luiz de Queiroz”; as serenatas ainda são relembradas com eventuais “Noite da Seresta”, em pontos estratégicos da cidade o que nos causa pequeno consolo e muito saudosismo; os prédios do Engenho Central resistem ao tempo e graças ao seu tombamento é hoje ponto turístico e de encontros sócio culturais da cidade.
Ah! Que nostalgia, que poder de juventude carrega meu coração; pulsa entusiasmo.
O tempo, na minha memória, vibra a emoção misteriosa das noites de luar, a estender réstias de pratas pelas árvores, telhados e o rio, e os acordes de violões seresteiros nas madrugadas frias. Bailes juninos nos terreiros, muitas vezes à luz de lampiões, e as brincadeiras com busca-pés. Os bate-papos nas calçadas até altas horas da noite, sem preocupações com seguranças.
Essas emoções ou ansiedades povoam o meu espírito, dando-me a sensação de que vivo perenidade.
Empolgado, o arrebatamento leva-me a cantarolar meio desafinado alguns boleros; enquanto irradiam ainda mais minhas emoções. Vem-me à lembrança o Trio ITOJUVAL composto por: Júlio carteiro, Toninho e Valter, presença constante nas noites piracicabanas e nos programas radiofônicos das: “A Voz Agrícola do Brasil” e PRD-6 “Rádio Difusora de Piracicaba”, interpretando com maestria o repertório do saudoso Trio IRAKITAN.
O passado deixou saudade, nostalgia, há canções que machucam o coração, pela poesia, melodia e ritmo das notas musicais.
Como é interessante o subjetivismo humano!
Em meu peito permanece a nostalgia de ontem, o que será amanhã?
Recomponho à mente todo o itinerário percorrido nas asas do tempo, e sinto que, no âmago do meu ser, ainda palpita forte a juventude, ainda há um garimpo de energias vitais.
Minh'alma é um relicário guardando inúmeros papéis, sou mais um protagonista no belo espetáculo da vida, cujo palco é o mundo e o tempo interminável.



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