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sexta-feira, 22 de maio de 2020

“Morgando” ao sol




Carmen Pilotto

“Eu tenho pouco a dizer sobre a magia. Na verdade, eu acho que nosso contato com o sobrenatural deve ser feito em silêncio e numa profunda meditação solitária”
Clarice Lispector


Hoje começarei o texto usando uma expressão de meu amigo Cecílio Elias Neto, morgar, ficar parado, assim, sem nenhuma intenção, quase que em relaxamento, tendo ao lado a fiel companheira Mel, em pose de esfinge de adoração,  com os olhos compridos;  ao fundo a trilha sonora é de filhotes de bico de lacre, em um arquitetado ninho no vaso de rafis, piando em alto e bom som por alimento.  
Nas idas e vindas do neto, nesta época de pandemia, tento manter firmemente a disciplina dos 30 minutos ao sol. É fato, ou acabo de uma vez com a deficiência de vitamina D ou aceito que meu corpo somente reconhece a luz prateada das noitadas boêmias.
Estou lendo o livro Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, professora de literatura da USP, com uma narrativa biográfica acompanhada de recortes reais de depoimentos, trechos da obra dessa misteriosa escritora. Estão incluídas na obra reportagens da época que trazem uma humanidade impressionante para Lispector. Trata-se de um relato fundamentado, entretanto, repleto de emoções e veracidades que chegam a doer;  afinal fraquezas e fortalezas refletem nossa própria imagem e dilaceram a carne, porque no fundo temos parecenças (voltando ao Cecílio).
Adoro biografias relatadas por escritores curiosos e detalhistas, que vão ao extremo nas pesquisas, no âmago do ser amado. Essa exploração do outro certamente representa muitas motivações pessoais, uma sincronicidade e profunda empatia entre o biografado e o relator.
Passamos a vida nos surpreendendo com tantos seres humanos atípicos, eles obviamente são as almas que gostaríamos de ver registradas em papel...
Ler ou escrever sobre nossos ídolos denota muita coragem, porque há de se ter cuidado em não pesar na intensidade da admiração que sentimos por aqueles seres míticos. São muitos que gostaria de esmiuçar até o doer de meus ossos, olhos e criar calos nos dedos escrevinhadores...
Os sinos de vento alertam que o tempo do relaxamento passou. Bora voltar a vida real!


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