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quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Fiado só amanhã

Lídia Sendin

 

     Bem pequena era eu, ainda nem havia sido apresentada às tão amadas letras desta língua, e minha mãe me levava ao armazém do “seu” Lídio, perdido numa poeirenta estrada de terra num subúrbio de São Paulo, hoje próspera cidade de Poá.

     Morávamos lá perto de um sítio onde meu pai cultivava cenouras e alfaces entre outras coisas que já me fugiram da lembrança.

     Enfim, numa década sem supermercados ou similares, restava-nos aquele simples armazém e, é claro, o “seu” Lídio, que por seu meu xará me presenteava com doces da vendinha e por isso minhas lembranças se deleitam em tão açucaradas recordações.

     O fato é que, não sabendo ler, me atraíam as letras no amarelado papel grudado na descascada parede do boteco.

     Um dia criei coragem e perguntei o que estava escrito lá. Com grande e sacodido sorriso que lhe balançava a pança “seu” Lídio me disse, meio em segredo: Fiado só amanhã!

     Como nos minguados tempos de outrora já ouvira algumas vezes a palavra fiado, puxei timidamente a saia da minha mãe: Por que não voltamos amanhã? Ela, rindo ainda mais que do que “seu” Lídio, sussurrou: Porque amanhã estará escrito a mesma coisa e ele nunca precisará vender fiado. Aquilo me pareceu tremendamente injusto, ora, dar esperanças e não honrar a palavra! Não estava certo!

     O que me fez lembrar de tão insólita passagem da infância foi uma frase que ouvi de alguém que, cobrado pelos insucessos de sua vida política, dizia: Calma, o Brasil é um país do futuro! Como o futuro é sempre amanhã, a promessa não se tornará nunca mentirosa e tal qual o dono do pequeno armazém de beira de estrada, não precisará cumpri-la e poderá sacudir sua imensa pança enquanto ri de nós, crédulos brasileiros.

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