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quarta-feira, 13 de junho de 2012

Leitura, televisão e Democracia*

Armando Alexandre dos Santos
Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado

Recordo que, em princípios dos anos 70 do século passado, o Papa Paulo VI se referiu ao ambiente cultural já então prevalente no mundo inteiro, designando-o como “a civilização da imagem”. Nas últimas quatro décadas, esse fenômeno então apontado pelo Papa se intensificou sobremaneira: cada vez mais as imagens, os ícones, os símbolos gráficos ocupam espaços da nossa atenção, os quais antes ocupados pelas palavras, pelas frases, pelos pensamentos, pelas abstrações puras.
O predomínio cada vez mais dominador da televisão sobre o rádio e, ainda mais, sobre o jornal, é bem indicativo desse fenômeno, que se faz notar em todos, absolutamente todos, os campos da atividade humana.
O hábito da leitura, cada vez mais vai se tornando minoritário, praticado por um número decrescente de pessoas. Para que ler jornais, se o noticiário já nos é entregue pronto, embalado, até “mastigadinho” pelos noticiários televisivos diários? E, sobretudo, para que ler livros, que são caros, dão trabalho, tomam tempo e, no final das contas, “rendem” a quem os lê três ou quatro informações ou pensamentos que podem ser obtidos, sem custo nem trabalho, mediante a assimilação passiva de algumas poucas frases que a mídia televisiva nos oferece diariamente?
Por que ler livros científicos, se é possível assistir na tela, aprazivelmente, a programações de canais especializados na divulgação científica? Por que ler tratados filosóficos difíceis de entender e digerir, quando se tem ao alcance imediato inúmeros programas do tipo “você decide”, nos quais não há necessidade de raciocínios ou argumentos demonstrativos, bastando, como fórmula mágica invariavelmente aplicável, o célebre “achismo” para fundamentar qualquer afirmação?
O fato é que há uma diferença enorme entre a cultura adquirida pela leitura e a “cultura” (embora politicamente incorretas, pus de propósito essas aspas...) assimilada passivamente pela televisão.  Essa é a grande realidade.
Um bem conhecido educador piracicabano de nossos dias, Dr. Samuel Pfromm Netto, professor de Psicologia Educacional da USP, é um homem que conhece profundamente a televisão brasileira (pois trabalhou muito na TV Cultura) e é, ao mesmo tempo, profundamente crítico da má influência que a TV pode produzir sobre a formação das novas gerações.
Quando eu trabalhava em jornal, recordo que certa ocasião tive ocasião de entrevistá-lo e ele me explicou, em pormenores, o funcionamento da psique humana diante de informações novas. O espírito humano, ensinavam os escolásticos medievais (e, antes deles, os gregos antigos) procede normalmente em três etapas: ver, julgar, agir.
Inicialmente, vê-se. Ver, aí, tem significado amplo, incluindo não só aquilo de que se toma conhecimento pela visão ocular, mas tudo o que chega ao nosso conhecimento pela via de qualquer um dos sentidos.
Em segundo lugar, julga-se. Ou seja, diante de algum estímulo externo, procede-se a um julgamento: isso é bom ou mau? é certo ou errado? é belo ou feio? está de acordo com o que eu já sabia ou é algo novo? Se for novo, como incorporar ao conjunto dos conhecimentos anteriores? Essa incorporação é harmônica ou é conflituosa? Se for conflituosa, julga-se, em face do dado novo, o que já estava assentado.
Depois desse esforço crítico e analítico, vem a terceira etapa: age-se. Agir, no caso, não é só fazer alguma coisa, mas é exercer formalmente a vontade, mesmo que esse exercício não se traduza numa ação externa.
Esse é o procedimento normal do nosso espírito diante de todos os dados novos que apreendemos pelos sentidos. É assim que exercemos nossa racionalidade, nossa liberdade individual. Esse exercício, aliás, é indissociável dos direitos humanos mais elementares que cada indivíduo possa dispor livremente de si mesmo, ao longo de todo esse processo racional-volitivo. E é, também, indissociável da noção de Democracia, tal como geralmente se entende esse nebuloso conceito: só se admite a soberania popular se se partir do pressuposto de que cada elemento do povo, individualmente, exerce seu senso crítico e o traduz externamente pelo exercício constante da cidadania e pelo exercício periódico do voto.
Pois bem, como explicou o professor Pfromm Netto, o grande problema é que a televisão, pela rapidez com que comunica aos assistentes suas mensagens, visuais e auditivas, não permite que o espírito humano desenrole com normalidade o seu processo crítico e volitivo. De fato, cada segundo da programação é supervalorizado e aproveitado ao extremo. Sucedem-se em rapidez vertiginosa estímulos dos mais desencontrados: uma cena de violência espantosa, em seguida uma paisagem deslumbrante, depois uma cena de sexo, depois um comercial, depois uma cena enternecedora, depois outra violência etc. etc. E tudo de modo a produzir, no assistente, um suceder de impressões contraditórias que não têm tempo de serem criticadas e julgadas livre e racionalmente.
Isso produz um apassivamento acentuado do público, que acaba perdendo o hábito de refletir e criticar. E, depois de perder o hábito, o exercício da crítica torna-se penoso, torna-se algo que incomoda e se prefere evitar. É mais cômodo repetir, impensadamente, ideias prontas, que nos chegam à maneira de slogans publicitários...
Esse o grande drama da educação moderna, esse o grande drama da Democracia moderna. Repousa esta última, mentirosamente, sobre o mito de um povo teoricamente soberano, mas que na realidade não pensa e é habilmente conduzido por impulsos cientificamente projetados a partir de imensas máquinas de propaganda.
É claro que há exceções. Sempre há as minorias pensantes... mas que podem fazer elas diante de maiorias acarneiradas e disciplinadas?

* texto publicado no jornal "A TRIBUNA PIRACICABANA"

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