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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

VERDADES DE ARGILA

 Carla Ceres Oliveira Capeleti
Cadeira n° 17 - Patrona: Virgínia Prata Gregolin 

Seres humanos precisam de lembranças como ceramistas precisam de argila. Nosso reservatório de memórias é um quarto escuro onde guardamos experiências de diferentes matizes (aquele pôr do sol em bela companhia, o verde gritante de periquitos em revoada, o fantasma cor de medo que nos assombrou um dia), densidades (a delicadeza da seda, a fofura da lã ainda na ovelha, a espessura doce do mingau de aveia), cheiros (perfume de musgo em parede fria, terra molhada lá longe quando a chuva anda por perto, cheiro de sol nas roupas do quarador) e sabores (o gosto de saudade na batatinha frita que vovó fazia, o amargo do remédio que se toma por amor a quem nos ama, o doce do beijo roubado).
Coletamos lembranças pelas barrancas da vida e, com elas, moldamos nossas verdades como o ceramista conforma o barro à imagem e semelhança de seu criativo saber. Reunimos memórias diferentes, amassamos o passado até se tornar trabalhável, retirando impurezas inconvenientes a nosso projeto e, às vezes, umedecendo a mistura com lágrimas de alegria, tristeza ou poesia. Modelamos lembranças deixando impressões na verdade inventada que, então, vai ao forno de nossas paixões, onde queima e requeima até solidificar-se.
O ceramista, entretanto, percebe a diferença entre a argila e o objeto criado ao passo que nós chamamos de lembrança as úteis “verdades” que fabricamos para embelezar ou simplificar a vida. O passado é complexo demais. Tem muitos acontecimentos que jamais compreenderemos por inteiro. As pessoas, além de complexas, mudam com o tempo. Precisamos simplificar pessoas e fatos para calcular nossos próximos passos. Isso até funciona se soubermos a hora de jogar ao chão as “verdades” antigas que não servem mais, estilhaçando convicções incorretas.
Em um mundo mutável, verdades são provisórias e deveriam ser mantidas longe de paixões solidificadoras. Só assim continuarão maleáveis como deve ser o que se pretende eterno.


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