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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

ANACRONISMO

 Acadêmica Myria Machado Botelho
Cadeira n° 24 - Patrona: Maria Cecília Machado Bonachella

            Visitei minha terra.  Depois de algum tempo, o ser humano sente necessidade de um retorno, espécie de aconchego e reencontro com suas raízes.  As cidades pequenas possuem afinidades e características semelhantes, um cunho de simplicidade e de ternura que fala mais profundo ao coração.
            Em São Simão, o sol mais claro e o céu mais azul, livres da poluição, iluminam e destacam as paredes de pintura nova de casario de telhado brilhante, quase todo no alinhamento das calçadas.  Em acordo tácito, os moradores resolveram  renovar suas casas que contrastavam a velhice  com as construções recentes.
            Andei pelas ruas e calçadões estreitos e altos, cumprimentando parentes, conhecidos e desconhecidos, surpresos com a interpelação e a curiosidade da visitante.    Debrucei-me sobre as velhas pontes do rio que corta a cidade e olhei longe para os  grandes pomares com suas mangueiras amarelinhas de frutos, recordando-me do tempo em que vivia empoleirada sobre seus galhos ou  no balanço de corda, ganhando as alturas e sonhando alto.
              Em frente ao Grupo Escolar, detive-me por algum tempo.  Ali se desdobraram meus primeiros contatos disciplinados com o saber e o dever transmitidos  por mestres dedicados e capazes que me acentuaram o gosto pelos livros.  Na pracinha da Igreja Matriz, defronte ao Grupo, lembrei-me das quermesses e das festas religiosas, num tempo em que a confraternização era mais cordial e mais simples, as comadres  atualizavam os mexericos e os “correio-elegantes” funcionavam a todo vapor, endereçando declarações de amor aos namorados...       As crianças, na barraca das pescarias brincavam e sonhavam, num tempo em que o “faz de conta” e o medo gostoso das histórias de assombração, do saci Pererê e das bruxas com poderes sobrenaturais eram pura ficção sem maiores consequências...
            Muita coisa se extinguiu na terrinha e não está como antes.  A estação ferroviária da Mogiana, bem pertinho da casa onde nasci, transformou-se em Rodoviária.  Já não se ouvem os apitos sincopados e compridos, os vagões arrastando-se nos trilhos, em manobras ou arranques definitivos.  A chegada dos “Rápidos” da manhã e da tarde, sempre atrasados, e dos “Noturnos”, constituía um acontecimento.  Nas plataformas um alvoroço: quem vem, quem não vem, os “despejos” dos passageiros e as despedidas com acenos de mãos e de lenços, lágrimas e sorrisos que sugeriam a busca do desconhecido e das aventuras.
            Na sorveteria, bem na esquina da “Rua do Meio”, perto da praça principal, pedi um picolé de chocolate, o “sorvete de pauzinho” de minha infância, tão desejado e proibido, em razão da provável dor de garganta.  Na praça maior, uma decepção:  as espirradeiras, os chapéus de sol foram substituídos e o coreto, em volta do qual se brincava de ciranda, de amarelinha, de fura-bolo e samba- lelê, ouvindo a “banda” ou a “retreta”, já não existe.

            Sentei-me no banco de pedra, diante dos morros e do Cruzeiro, bem no alto, que já acendia suas luzes.  O sol se despedira desmaiando em sua apoteose derradeira.  Os sinos da Matriz do meu  batismo , os mesmos sinos tangiam docemente, enquanto  eu usufruía o silêncio, quebrado apenas pelo rumorejo do ribeirão ali próximo e o pio dos pássaros, aninhando-se sob as árvores...  Senti-me proprietária daquela doçura e daquele envolvimento...  Súbito, ouço os acordes de uma antiga música: uma oferta anônima para completar um dia muito pleno em que me debrucei sobre o passado, com saudade da menina que lá ficou!...

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