“Gosto de ti
apaixonadamente, / De ti, que és a vitória, a salvação, / De ti, que me
trouxeste pela mão / Até ao brilho desta chama quente.
“A tua linda voz
de água corrente / Ensinou-me a cantar... e essa canção / Foi ritmo nos meus
versos de paixão, / Foi graça no meu peito de descrente.
“Bordão a
amparar minha cegueira, / Da noite negra o mágico farol, / Cravos rubros a
arder numa fogueira!
“E eu, que era
neste mundo uma vencida, / Ergo a cabeça ao alto, encaro o sol! / - Águia real,
apontas-me a subida!”
Esse
é um bem conhecido soneto de Florbela Espanca, tragicamente falecida em Portugal,
em 1930. Os Espanca são uma antiga família do Alentejo português. Quase contemporâneo
de Florbela foi seu tio, Padre Joaquim José da Rocha Espanca, um dos homens
mais cultos de Portugal no século XIX, historiador, arqueólogo, músico e
tipógrafo, além de sacerdote e autor de uma monumental “História de Vila
Viçosa”... em 36 volumes! Tive que ler e “fichar” inteirinhos os 36 volumes,
para um livro que publiquei em 1996.
Enquanto
efetuava pesquisas em Vila Viçosa, passei numerosas vezes diante do túmulo da
poetisa. Eu costumava passear pelo cemitério, anexo ao Santuário de Nossa
Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Padroeira de Portugal, situado dentro das
muralhas medievais da vila e cercado de casas antiquíssimas. Ali, num cemitério
religioso, mesmo tendo sido Florbela suicida, foi ela sepultada.
O
soneto apresenta elementos coesivos muito claros e bem articulados. Sua
correção gramatical é perfeita.
Não
fica, entretanto, claro quem é o personagem, ou entidade, a quem a poetisa se
dirige. Como simbolista que era, Florbela compõe seus versos de modo um tanto
obscuro e indefinido. Deixa meio nebulosa a destinação do soneto.
Pode
ser dirigido a algum homem em especial - talvez um dos numerosos e passageiros
amores que teve em sua curta e atribulada vida - que a ergueu um pouco da
depressão e do desespero em que vivia mergulhada, dando-lhe alguma esperança no
futuro. Pode, também, ser dirigido a algum homem ou amor ideal, platônico,
idealizado. Pode, em rigor, dirigir-se também a algo que não seria um homem,
mas um fato, uma ideia, um projeto, um vago anseio, ou, talvez, ao Amor,
entendido metafisicamente, como valor absoluto e quase identificado com uma
vaga divindade panteísta, muito ao gosto da infeliz Florbela.
Tudo
é nebuloso, nesse poema. Se devidamente situado no tempo e contextualizado, talvez
pudesse ser mais claramente interpretado. Mas, o que realça do conjunto, no meu
modo de entender, é a figura da poetisa, amargurada, desesperada, sem rumo e
sem esperança na vida, que de repente toma contato com alguém, ou com alguma
coisa, que lhe desperta o amortecido sentimento de esperança, de desejo de
superação, de ascensão.
As
metáforas que se sucedem realçam essa ideia: essa pessoa ou coisa é como a
graça para um peito descrente, como um bordão que ampara um cego, como um farol
que orienta em meio à escuridão da noite, como uma água real que fita de frente
o sol e voa pelas alturas em direção a ele.
Nota-se
a referência à “linda voz de água corrente” que ensinou a poetisa a cantar. De
quem seria essa voz? Seria a de um cantor, talvez um fadista, o seu amor de
ocasião? Seria a de uma criança, com voz cristalina, que despertou na mente
perturbada da poetisa sentimentos de saudades de uma inocência perdida muito
tempo atrás?
Nenhum comentário:
Postar um comentário