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João Umberto Nassif
Cadeira n° 35 - Patrono: Prudente José de Moraes Barros |
O raio de luz penetrando pelas frestas trazia um pouco de oxigênio e esperança, as sirenes gritavam, os motores das pesadas máquinas roncavam, cães latiam, vozes indefinidas ecoavam. Os ombros estavam presos em um abraço de concreto. Sentia-se em uma camisa de força. À sua frente projetava-se um filme, um menino de pés no chão, calça curta, corria atrás de uma bola, uma voz o chamava: “– Neco! Venha tomar tomar banho!” O pé de jabuticaba, com tantas frutas docinhas. A cerca de bambu quase tombando com o peso do pé de chuchu, carregadinho. Quantos cavalinhos ele poderia fazer com aqueles chuchus! Bastava colocar quatro pedaços de taquara e pronto! Estavam em pé para a batalha! A mangava voava fazendo um barulho forte com o movimento das suas asas. Dona Madalena estava junto ao fogão improvisado, feito com tijolos, ali estava sendo preparado o sabão feito em casa. Sebo, cinza de fogão a lenha, soda cáustica, água e fervura. O cheiro forte invadia o ar pesado. Depois do cercado a Mimosa mascava o capim, um processo interminável. Lembrava muito quando Chiquinha mascava o chiclete. O chão encharcado formava um lodo negro, macio, quando pisavam nele o barro subia pelos vãos dos pés nus. O trabalho no armazém do Seu Candinho, logo cedo o café com pão e margarina. Um pedaço de fumo de corda para o Nicolau. A conversa sem fim do Zé do Prego. O cheiro de pão fresco invadia o ar. Seu Candinho arrastando o chinelo, Dona Creusa com óculos de aro preto e lentes grossas conferindo os números, era dia de receber as cadernetas dos clientes. Aquilo tudo era tão igual, todos os dias a mesma coisa, mais parecia um quadro pintado pelo Zé do Bode. O amor de Ritinha, que fechava os olhos quando ria. O dia em que vestiu a farda no quartel. Motorista do Tenente Jorge, nunca tinha visto nada igual, um militar no exército brasileiro, descendente de japonês, que dava ordens sorrindo, advertia sorrindo, expulsava sorrindo. Seus desafetos diziam que ele só chorava quando fazia amor com sua mulher! O ingresso na universidade. A liderança estudantil. O baile de formatura dançando com Denise, o aroma do perfume era inesquecível. O ingresso no Instituto Rio Branco. O professor Zé Barata, que tinha uma fotografia de fraque e cartola junto à Rainha Elizabeth da Inglaterra. Chico Brilhantina dava aulas de ética governamental. Mané Cascadura, sujeito intragável, nariz empinado. O aroma do perfume de Denise tornou-se mais forte. Já não sentia mais nada da cintura para baixo. Que raios de coisa estava fazendo naquele país de gente briguenta? No começo era tudo muito bonito, depois um maluco assumiu o governo. Tinha pedido transferência para outro continente, mas o momento não lhe era propicio. Dias Menezes, ministro da pasta não queria mexer em nada naquele momento. Cada diplomata ficaria onde estava. Ele poderia estar em Nova Iorque, Londres, Paris. Mas estava naquele fim de mundo. O cheiro de sabão caseiro invadiu-lhe as narinas. Acho que Dona Madalena vai fazer mais uma tachada hoje. O beijo de Ritiinha. O perfume de Denise. Já não tinha mais forças para mexer o pescoço. Um estalo. Escureceu tudo.
Ritinha em Belém, Denise no Rio de Janeiro, Dona Madalena em Confins, sentadas em frente a televisão abrem a boca em um espanto só, o apresentador dá a noticia:
“O Brasil perde um dos seus mais valorosos diplomatas, faleceu hoje soterrado nos escombros após um bombardeio o embaixador Célio Alves de Lima, o presidente da república decretou luto oficial por três dias”. Ritinha passa o batom, Denise abre o vidro de perfume e espalha algumas gotas sobre o braço. Dona Madalena lembra que amanhã tem que comprar mais soda cáustica para fazer sabão. Célio teve o seu corpo transladado para o Brasil, velado em câmara ardente, seu caixão coberto com a bandeira nacional. As televisões exploraram o assunto até a exaustão, transformaram o diplomata no candidato a santo, assim como no passado fizeram com alguns políticos, raposas de pelo longo, que morreram no poder e foram pranteados na comoção popular estimulada pela mídia ávida de emoções baratas, que caem no gosto popular. Autoridades desfilaram ante o caixão, com olhos vermelhos de choro forçado ou aguardente, sabiam que naquele momento estavam faturando a tão preciosa visibilidade popular. O cheiro de vela queimando, misturado ao de flores, a grande massa popular querendo chegar junto ao caixão, tudo era um convite para sair ao ar livre. Alunos do Itamaraty presentes no féretro, imaginavam se um dia estariam na mesma condição: herói morto. Adeus viagens, recepções, contatos com pessoas importantes de outros países. Só restava o perfume de Denise e o batom vermelho de Ritinha. Na praça recém inaugurada um morador se rua se acantona na base da herma do Senhor Embaixador. Um cão que lhe faz companhia espanta as pulgas. Em um país muito distante as bombas continuam a matar inocentes. A humanidade segue em sua rotina habitual.
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