Leda
Coletti
Quando professora, morei em
Araraquara, na casa de uma senhora, onde Rosalina cuidava dos serviços
domésticos. Beirava a casa dos sessenta anos, embora não aparentasse. Morena
trigueira, enviuvara alguns anos atrás. Era muito estimada pela moradora, pois
ela e o finado marido foram caseiros da família. Por isso, sempre residiram no
grande sobrado, ocupando o apartamento do quintal. Após seu falecimento,
continuou ocupando-o, sozinha.
Muito expansiva e “sem papas na língua”, era muito
querida por todos que frequentavam aquela casa. Cuidava bem dela,
principalmente da cozinha, onde procurava fazer sempre um quitute especial,
para agradar as visitas e seus moradores. O café da manhã era mesmo um
requinte! Preparava suco de laranja, leite fervido, pão fresco e quente,
buscado na padaria da esquina e, antes do despertador tocar nos quartos, lá
estava ela batendo nas portas, com a bandeja pronta, coberta por alvo
guardanapo.
Gostava muito de festas e,
sobretudo da comemoração de seu aniversário, quando os familiares e amigos de
sua patroa se reuniam para uma suculenta feijoada. Nesse dia ela se esmerava no
penteado, usando uma das minhas perucas,(ela gostava muito da loira).Vestia a
blusa preta colante, sandálias de salto e uma saia longa rodada, com grande
babado. Muitos colares adornavam seu pescoço, além de brincos pingentes. Sua
pintura carregada em excesso chamava a atenção. Ela se achava muito bem assim,
e insistia no reforço positivo dos conhecidos : “Você está abafando!”
Nos finais de semana saía à noitinha e, geralmente
voltava “alegre”, por causa da cervejinha e outras “tranqueiras”, como dizia minha
amiga. Esta, chamava sua atenção por chegar tarde da noite, cantarolando,
batendo portas, e até falando sozinha. Havia ocasiões, em que se formava um
“bate-boca” acalorado, entre as duas. Ela, a tudo retrucava e só parava, ao
ouvir sua voz forte “cale essa boca, vá cuidar da vida.”
Naquela noite, juntamente com as amigas fui ver o
Carnaval na avenida principal da cidade. Para ver o desfile, havia pessoas
acomodadas nas janelas, nos mesaninos dos prédios, em cima de caminhões. Os
mais afoitos por lugares melhores sentavam na calçada, em bancos improvisados e
cadeiras. O burburinho era geral. Enquanto o corso não começava, um grande
“footing” se formava. Rapazes e moças, com roupas leves e vaporosas,
aproveitavam o tempo para paqueras e conversas. Os vendedores de água, pipoca,
amendoim, algodão doce, bexigas, cervejinhas, refrigerantes, sorvetes, passavam
oferecendo seus produtos.
De repente, ouve-se o som de tambores que se
aproximam. Os guardas insistem para que as crianças e adultos, deixem a
passagem livre para os foliões. Uma fileira de senhores vestidos de terno de
linho branco, calçando sapatos da mesma cor, bengala numa das mãos, e na outra
segurando a cartola saúdam o povo que os aplaude. De intervalo a intervalo se
sucedem os blocos: o das odaliscas, dos bichos, das baianas, que acompanham com
muita desenvoltura a bateria, todos com trajes típicos.
Para separar os blocos e carros, sempre aparecem moças
dançando, fazendo evoluções. Numa dessas passagens, nós ficamos surpresas ao
vermos aquela senhora, destoando entre as demais. Vestia um maiô vinho cheio de
vidrilhos e usava meia de seda na perna descoberta. Os seus trejeitos não
revelavam ensaio anterior, como as demais dançarinas. Percebia-se ser tudo
improvisado. Mas isso não impedia que o público a aplaudisse, pois sua animação
era contagiante. Jogava confete, serpentina, não parando de cantar e sambar.
Foi numa das evoluções, quando se aproximou do lugar em que estávamos, que a reconhecemos.
Era Rosalina. Ela não nos viu.
O espetáculo
terminou por volta aproximadamente das duas horas da manhã. Fui em seguida para
casa e logo me deitei. Como a janela do meu quarto dava para o seu apartamento,
fiquei atenta para ouvir quando ela chegaria. As horas foram se passando e nada
dela chegar. Perdi o sono. Já eram cinco horas da manhã; os galos das casas
vizinhas cantavam, anunciando a quarta-feira de cinzas, e nem sinal dela chegar.
Ao levantar para tomar um copo d’água deparei-me com minha amiga e contei-lhe o
ocorrido. Ambas decidimos sair para ver se a localizávamos.
Fui dirigindo meu carro pela avenida onde morávamos,
na direção do centro comercial do bairro. Um vulto de mulher na quadra adiante,
chamou nossa atenção. Paramos a uns cinquenta metros e ficamos observando. Era
um bar conhecido na cidade, frequentado por bêbados, que se reuniam diariamente
para tomarem vários “tragos” de pinga. As brigas que aí ocorriam, culminavam
muitas vezes em prisões e até em assassinatos.
A mulher que se parecia com nossa amiga sentou-se na
sarjeta e, de onde estávamos ouvíamos seus palavrões, acompanhados de gestos
com os braços. Segurava numa das mãos um copo. Era nossa companheira. Enquanto trocávamos
ideias sobre quais atitudes tomar, saiu um senhor com andar cambaleante e foi
em sua direção. Falaram alto alguns segundos e, sem que se esperasse, ele lhe
deu um chute, fazendo com que ela caísse na sarjeta e o copo se quebrasse.
Por sorte, nesse momento passou uma
viatura da polícia. Minha amiga saiu do carro e fez sinal para que parasse. Era
um policial, seu conhecido. Contou-lhe o sucedido e pediu-lhe que conduzisse
Rosalina para nossa casa, onde a esperaríamos. Este prontamente atendeu seu
pedido, mesmo ouvindo seus impropérios, recusando-se a entrar no camburão.
Quando esta chegou escoltada pelos soldados, minha
amiga lhe disse com voz alterada: “Depois conversaremos”. O dia já rompia.
Dirigindo-se ao apartamento, não entrou de imediato. Sentou-se
na porta e olhando em direção aos meus aposentos, dizia:
_ Suas bruxas, o que vocês pensam que são? São umas chatas,
metidas a madames, e eu, a trouxa, todo dia a levar café na cama para vocês. Mas,
vão ver! A partir de hoje, não vai haver mais nada disso. Adeus ao lombinho e à
berinjela de forno. Ela se referia aos quitutes muito apreciados por nós.
Eram sete horas da manhã, quando se fez silêncio naquele
sobrado. Que quarta-feira de cinzas! Sem café na bandeja, sem almoço, e os
olhos ardendo e vermelhos, fui trabalhar
no período da tarde. Logo que entrei na sala de aula, uma aluna
observou:
- Ei professora, brincou bastante?
A senhora está com cara de que farreou a noite inteira!
Ao retornar do trabalho, vi que a
mesa do jantar já estava posta. Antes que sentássemos para saborear a suculenta
sopa, Rosalina já estava anunciando:
-Amanhã vou preparar aquela bacalhoada
que vocês gostam, e, sem se importar com as broncas da patroa saiu a
cantarolar.
Era assim nossa convivência. Um misto de surpresas alegres
e tristes. De tudo ficou a lembrança saudosa das amigas que já partiram para o
lado de cima.