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Carla Ceres Oliveira Capeleti
Cadeira n° 17 - Patrona: Virgínia Prata Gregolin
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Seres humanos precisam de lembranças
como ceramistas precisam de argila. Nosso reservatório de memórias é um quarto
escuro onde guardamos experiências de diferentes matizes (aquele pôr do sol em
bela companhia, o verde gritante de periquitos em revoada, o fantasma cor de
medo que nos assombrou um dia), densidades (a delicadeza da seda, a fofura da
lã ainda na ovelha, a espessura doce do mingau de aveia), cheiros (perfume de
musgo em parede fria, terra molhada lá longe quando a chuva anda por perto,
cheiro de sol nas roupas do quarador) e sabores (o gosto de saudade na
batatinha frita que vovó fazia, o amargo do remédio que se toma por amor a quem
nos ama, o doce do beijo roubado).
Coletamos
lembranças pelas barrancas da vida e, com elas, moldamos nossas verdades como o
ceramista conforma o barro à imagem e semelhança de seu criativo saber.
Reunimos memórias diferentes, amassamos o passado até se tornar trabalhável,
retirando impurezas inconvenientes a nosso projeto e, às vezes, umedecendo a
mistura com lágrimas de alegria, tristeza ou poesia. Modelamos lembranças
deixando impressões na verdade inventada que, então, vai ao forno de nossas
paixões, onde queima e requeima até solidificar-se.
O
ceramista, entretanto, percebe a diferença entre a argila e o objeto criado ao
passo que nós chamamos de lembrança as úteis “verdades” que fabricamos para
embelezar ou simplificar a vida. O passado é complexo demais. Tem muitos
acontecimentos que jamais compreenderemos por inteiro. As pessoas, além de
complexas, mudam com o tempo. Precisamos simplificar pessoas e fatos para
calcular nossos próximos passos. Isso até funciona se soubermos a hora de jogar
ao chão as “verdades” antigas que não servem mais, estilhaçando convicções
incorretas.
Em um mundo
mutável, verdades são provisórias e deveriam ser mantidas longe de paixões
solidificadoras. Só assim continuarão maleáveis como deve ser o que se pretende
eterno.