Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
Coesão significa a “união íntima das partes de um todo”, enquanto coerência significa, mais amplamente, “ligação ou harmonia entre situações, acontecimentos ou ideias”. Num texto escrito, coesão é o elemento de ligação que cada parte de um todo tem com outra(s) parte(s) que diretamente toca. Seria, pois, como a ligação que cada um dos elos de uma corrente tem com o elo anterior e o que lhe sucede. Já coerência diz mais respeito ao todo, ao conjunto, de tal forma que haja relação lógica entre todos os elementos, desde o primeiro até o último.
Vejo que está tudo muito teórico. Passo a dois exemplos que me ocorrem, os quais, espero, tornarão mais claro meu pensamento. O primeiro, que cito de memória, é um velho bestialógico (nome que se dava, antigamente, a composições literárias cômicas, burlescas, em que nada fazia sentido lógico; são extremamente difíceis de compor, embora possam parecer fáceis...) de Bernardo Guimarães:
“Com grande desgosto dos povos da Arábia
Vieram os bonzos das partes do Além
Comendo presuntos, empadas de trigo,
Sem ter um vintém.
E os ratos vieram, trotando depressa,
E de espada na cinta, barrete na mão,
Prostraram-se ante eles, fazendo caretas
Com grã devoção.
E o filho dos ermos, dos montes rolando,
Puxou pela faca, de grande extensão,
Caiu como um cisne, que toca trombeta,
De ventas no chão.
E eu vi Napoleão,
Enquanto um mancebo, de nobre feição,
Brincava entre as pernas, do Rei Salomão.”
Trata-se, evidentemente, de uma composição burlesca, em que o tom grandiloquente e a sonoridade épica com notas de arcaísmo se contrapõem com as brincadeiras mais desencontradas. Nessa composição os elementos de coesão estão presentes e são corretos. O que falta, de todo, é a lógica, a coerência.
Outro exemplo: lembro de ter estudado, ainda no curso colegial (nos velhos tempos em que ainda se estudava filosofia com Lógica formal), a figura do sorites, que é o raciocínio encadeado, em que se sucedem as afirmações, todas coesas entre si, mas devendo o conjunto fazer sentido, para o sorites ser verdadeiro e não sofístico.
Exemplo de sorites verdadeiro é o da raposa da fábula, que hesita em atravessar um lago cuja superfície estava endurecida pelo frio: “Este regato faz barulho; o que faz barulho move-se; o que se move não está gelado; o que não está gelado não é sólido; o que não é sólido não pode aguentar-me; logo, este regato não pode aguentar-me”. Temos, aí, um sorites perfeito, contendo uma sequência de silogismos implícitos, em que há coesão das várias partes entre si, e há coerência no conjunto.
Vejamos agora um exemplo de falso sorites, em que há coesão, mas não há coerência:
“Os espanhóis têm imaginação ardente; quem tem imaginação ardente, exagera; quem exagera, falta com a verdade; quem falta com a verdade, mente; quem mente, peca; quem peca, vai para o Inferno; logo, os espanhóis vão para o Inferno”. Esse é um sorites sofístico, porque nele, pouco a pouco, os vocábulos e as ideias expressas vão, a cada frase, sendo tomados em sentidos mais amplos ou carregados, os conceitos vão sendo ampliados, de modo a sucessivamente mudarem totalmente de figura. E o resultado final é, obviamente, um non-sense. Nesse sorites, há coesão mas falta coerência.
Creio que, com esses exemplos, fica bem clara a distinção entre as duas coisas. É claro que, num texto, deve haver coesão, ou seja, os elementos conectivos, as conjunções, as expressões de ligação, as preposições etc., devem estar adequadamente colocadas. Mas deve haver também coerência, de modo a que o conjunto faça sentido, a que não haja contradições internas dentro desse conjunto, a que os termos sejam utilizados sempre com a mesma extensão de sentido.
Artigo publicado no jornal A TRIBUNA PIRACICABANA
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