Gustavo Jacques Dias Alvim Cadeira n° 29 - Patrona: Laudelina Cotrim de Castro |
Em 1938, meu pai comprou um carro, o que não era comum. Poucas famílias podiam se dar a esse luxo. Durante minha infância e início da adolescência, ele teve esse automóvel, um Ford 1934, preto, duas portas, muito conservado, que ficou sobre cavaletes, guardado numa garagem por causa do racionamento da gasolina, provocado pela II Grande Guerra Mundial. Alguns proprietários de veículos automotores instalaram gasogênios (cujo combustível era o carvão vegetal e bastante perigoso por causa do fogo e do oxigênio) para poderem continuar rodando. Era uma solução trabalhosa, suja, cuja tecnologia meu pai recusou utilizar, preferindo comprar um cavalo para fazer suas visitas domiciliares no exercício da medicina, sua profissão. Durante meses, o carro ficou guardado, sem ser usado, numa garagem, no fundo do quintal; era um local que eu frequentava quase todo santo dia. Gostava de admirar o carro, sentar no banco do motorista e fingir que o estava dirigindo. Sonhava acordado.
Quando o conflito mundial terminou e meu pai recolocou o automóvel para rodar, eu me deliciava quando podia sair com ele para fazer curtos trajetos, uma vez que a cidade, onde vivíamos, era muito pequena. Ficava fascinado vendo-o dirigir. Não perdia nada e perguntava tudo. Para que serve esse pedal? E essa alavanca? E olhando para o velocímetro indagava: esse “relógio” pra que serve? Prestava muita atenção nos movimentos do motorista, para depois imitá-lo quando estava nos meus brinquedos.
Não via o dia e a hora de poder dirigir um carro de verdade. A oportunidade chegou quando eu tinha uns 15 anos. O carro do meu pai já era outro, mas também Ford e mais novo. Sua cor era o cinza e o ano de fabricação, 1948. Um automóvel mais bonito com suas linhas curvas, bem maior (acomodava seis pessoas), com muitas novidades, dentre elas o câmbio junto ao volante (quatro marchas manuais: 1ª, 2ª, 3ª e ré), buzina mais sonora, quatro portas, porta-malas e tantas outras novidades. A chance de guiar o “possante” chegou quando, saindo, num domingo à tarde, com meu tio Jamil, muito querido, ele me perguntou:
— Você sabe dirigir?
E eu, na ânsia de fazê-lo, respondi, sem hesitar:
— Nunca dirigi, mas eu acho que sou capaz de guiá-lo.
E completei: — de tanto brincar de motorista, de tanto observar o meu pai, eu aprendi.
Meu tio foi muito pronto e corajoso:
— Então sente aqui e saia com o carro.
Não pensei duas vezes. Não podia perder a oportunidade, mesmo estando um pouco temeroso. Tomei o lugar dele, que deixara o motor funcionando e o câmbio em ponto morto, apertei a embreagem, engatei a primeira marcha, soltei o freio de mão e, cautelosamente, na rua plana, fui fazendo o que vira meu pai fazer tantas vezes: aliviar a embreagem e acelerar suavemente. Quando a máquina possante começou a se mover, senti-me vitorioso, ri nervosamente e fui em frente com os incentivos de meu tio.
E ele me dizia:
— Você estava querendo me enganar quando disse que nunca havia dirigido um carro.
Ele não acreditava em mim; mal sabia que eu também não estava totalmente seguro de que fosse capaz. Lembro-me de que estávamos próximos da ESALQ e ele me propôs que levasse o carro de volta à casa de meus avós, onde estavam meus pais, precisamente, na rua do Vergueiro, entre a Prudente e a São José, fazendo, contudo, um trajeto que não cortasse o centro, para evitar o movimento, que, na realidade, era mínimo, ou, então, o encontro com algum fiscal de trânsito da Prefeitura, pois era esta e não a Polícia que cuidava dessa área.
O fato é que cheguei vitorioso. Meu tio adiantou-se para contar ao meu pai que “o menino sabia dirigir e que tinha trazido o carro da ESALQ até ali”. Ele não acreditou; pensou que meu tio estivesse brincando, porém, com a insistência deste, me quis ver dando uma volta no quarteirão. E lá fui eu fazer a demonstração. Felizmente, tudo deu certo. Daí, para frente, sempre que surgia uma oportunidade, meu pai me deixava dirigir um pouquinho ou então fazer algumas manobras . Depois dos dezesseis eu saía, sem habilitação, sozinho ou com minha mãe ou meu avô, que não dirigiam, mas solicitavam os meus préstimos, como motorista, para levá-los, quando queriam comprar verduras no Mercado ou farinha de milho numa fábrica perto da Ponte do Mirante. Para dizer a verdade, até viagens a Rio Claro, Limeira e outras localidades próximas eu fiz, para levar meus pais à estação da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, pois costumavam pegar o trem para viajar à Alta Paulista, onde tinham um sítio com plantação de café.
Houve um fato muito interessante. Às vésperas de completar meus dezoito anos, tanto minha mãe como meu avô me chamaram, separadamente, para dizerem, em sigilo, que me dariam de presente a importância para pagar a minha carteira de motorista. Meu avô raramente presenteava os netos por ocasião do aniversário, fazia-o, sim, quando a gente menos esperava. Eu queria ganhar presente dos dois. Então, combinei com minha mãe o seguinte: aceitaria o presente dele, enquanto ela, me daria uma outra coisa. Assim, garanti os dois.
Não é preciso dizer que dei entrada nos papéis para tirar a carta de motorista na Seção de Trânsito da Delegacia de Polícia, no dia seguinte, daquele em que completei meus 18 anos, uma vez que não havia obrigatoriedade de se fazer o curso, aliás, nem auto-escola havia. Menos de 20 dias depois, eu já era motorista habilitado e documentado.
A partir daí o sonho já era outro: comprar o meu próprio carro. Mas essa é outra história, que vou deixar para outro dia!
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