Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
De fato, antigamente entendia-se a leitura como algo inseparável da fala. A leitura costumava ser feita em voz alta. Mesmo quando o leitor lia sozinho, ia mexendo os lábios e, em voz baixa, pronunciava as palavras do texto. Isso era explicável. Antes de existirem sinais gráficos de pontuação, antes mesmo da diferenciação de letras maiúsculas e minúsculas e da distribuição do texto em parágrafos e tópicos, da utilização de títulos e subtítulos, os textos eram escritos uniforme e continuadamente. E em letra pequena, porque o suporte da escrita (rolo, papiro, pergaminho) era muito caro e precisava ser economizado.
Nessas condições, a leitura em voz alta, com a devida entonação, tornava-se recurso auxiliar quase indispensável para a própria intelecção do que estava sendo lido. O mexer a cabeça, acompanhando o texto, e a utilização de um instrumento pontudo qualquer que ia seguindo cada uma das palavras lidas, eram, também, habituais.
Na atualidade, recomenda-se que a leitura não seja feita acompanhada do movimento dos lábios e da cabeça. Recomenda-se também que o leitor não vá lendo cada palavra isoladamente, mas procure, com o olhar, abarcar algumas palavras, até mesmo a frase inteira. É assim que hoje, auxiliados pelos sinais gráficos, costumamos proceder, é assim que procuramos formar os novos leitores.
Essas considerações me fazem retornar aos bons tempos em que estava saindo da adolescência e entrando na mocidade, quando trabalhei em uma editora, ajudando no processo de elaboração e composição de livros.
Naquele tempo (refiro-me a 1971, 72, 73...) ainda não havia computadores. O recurso, hoje tão habitual, de processadores de texto que permitem correções, interpolações, deslocamentos de parágrafos ou frases dentro do texto, nada disso existia. Todo o trabalho editorial era feito em papel, no sistema de lápis, borracha e caneta. Todas as editoras possuíam equipes de datilógrafos (que estão para os modernos digitadores mais ou menos como os mamutes pré-históricos estão para os atuais elefantes africanos ou indianos...) que precisavam copiar inteirinhos os livros em processamento, tantas vezes quantas fosse necessário para se chegar até o texto final.
Cada vez que o rascunho de um livro em fase de elaboração ficava carregado demais de correções e apontamentos, tornava-se indispensável redatilografar todo o texto. Entravam então em cena profissionais muito respeitados, chamados de revisores. Esses revisores trabalhavam em dupla. Um ia lendo, em voz alta, o livro inteirinho, indicando pontos, vírgulas, parágrafos etc. etc. E o outro ia conferindo e anotando os erros. Quando chegavam ao fim, trocavam os papéis. O que tinha lido, passava a conferir o texto datilografado, o que tinha conferido agora passava a leitor.
Era um trabalho cansativo, desagradável, terrivelmente soporífero. Tive que consumir muitas e muitas horas da minha florida juventude nessa tarefa que nós, brasileiramente, chamávamos de “conferição”, e os mais puristas faziam questão de denominar “conferência”.
Sempre fui um péssimo “conferidor” (ou conferente). Eu me deixava entreter pelo texto, ia acompanhando o conteúdo e deixava passar muitos erros. Interrompia muitas vezes o trabalho, que me dava irresistível sono, para concordar ou discordar do que estava sendo lido. Fazia comentários, dava palpites onde não era chamado... Em suma, era um fracasso como revisor.
Por quê? Porque não seguia as praxes adequadas ao papel de um revisor.
Um engenheiro que trabalhava na editora e supervisionava os serviços (homem de grande cultura e que muito ajudou na minha formação), certa vez me explicou que o bom revisor não pode pensar no conteúdo do que está revendo, para não se distrair. Para evitar isso, ele deve adquirir o costume de ler palavra por palavra, sem se preocupar com a frase toda. O ideal, explicava, até seria ler sílaba por sílaba, sem mesmo pensar no sentido da palavra, se tal fosse possível...
O conselho que se dava na época, para atingir a perfeição em matéria de “conferições”, era exatamente o oposto do conselho que hoje se dá para a formação de bons leitores. Em última análise, fui mau revisor porque era um bom leitor em formação, ou pelo menos em potencial! Eu lia frases inteiras com uma única “olhada”, acompanhava o sentido do texto, manifestava senso crítico e não reparava nos pormenores. Deixava passar erros que qualquer revisor semialfabetizado corrigiria imediatamente. Na verdade, eu já tendia à leitura dinâmica e seletiva (que com o correr das décadas iria acentuar sua rapidez e aguçar seus critérios de seleção).
O que hoje consideramos maus hábitos de leitura, era recomendado aos revisores. Ouvir o colega ler e, ao mesmo tempo, ir seguindo com os olhos o texto a ser conferido e, com os lábios, baixinho, ir lendo também, era recomendado. Se houvesse algum erro, a própria sonoridade diferente o acusaria. Também era recomendado ir acompanhando a leitura com o dedo, ou com um lápis, ou com uma régua, que deslizava linha a linha. Tudo, enfim, que hoje faz um mau leitor fazia na época um bom revisor, um ser que trabalhava com grande eficiência, mas maquinalmente e sem senso crítico.
Esses revisores antigos parecem ter desaparecido em muitos jornais modernos, a julgar pela grandíssima quantidade de erros que neles são encontrados...
*Artigo publicado na TRIBUNA PIRACICABANA
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