De repente... abri a janela de minha vida e deparei-me com
o alvorecer de uma existência setuagenária.
No horizonte, nuvens doiradas pelo sol do dia nascido, uma
brisa leve passeia pelas folhas das árvores embalando-as suavemente, a
fragrância das flores no ar, incansáveis colibris em harmoniosa coreografia
bailam de flor em flor, sobre a relva, intensa revoada de insetos e, tendo como
fundo deste cenário, o azul cerúleo.
Neste
devaneio, o pensamento vagueia pelo tempo e direciona a atenção ora para o passado
ora para o presente, a alma estremece, vibra diante das recordações, a
sensibilidade é mais forte que palavras e sons; traz-me à lembrança a piracema
do caudaloso Piracicaba, cardumes de peixes tentando transpor o Salto, como
brocados enfeitando o Véu da Noiva; a velha ponte do Mirante com passarela de
madeira e, a guarita do guarda da Sorocabana, cheia de cestos e jacás de
bambus, construídos entre uma passagem e outra da "Maria Fumaça",
como forma de passatempo e reforço de salário; o jardim da ponte com suas
frondosas árvores quase engolindo o coreto; as pescarias noturnas e escondidas,
no Salto do Piracicamirim dentro da ESALQ; das chaminés do Engenho Central,
soltando fumaças negras voluteando no ar; das cerâmicas da Rua do Porto,
contrastando com a densa mata ciliar e harmonizando-se com a Vila dos
Pescadores. Ouço: o inconfundível sino do bonde, tocado pelo cobrador a cada
passagem recebida, o berrante ao longe anunciando a chegada de mais uma boiada
com destino ao matadouro, as melodias das orquestras tocando nos Clubes Coronel
Barbosa e Cristóvão Colombo. A Banda Marcial “Cel. F. F. da Costa” (Escola
Industrial) com seu garboso uniforme e eclético repertório musical, arrancando
aplausos e provocando emoções em todas as apresentações, e da qual tive a honra
e felicidade de ser integrante. A orquestra “Pedrinho e sua Orquestra”, formada
em sua maioria por músicos da Corporação Musical “União Operária”, presença
constante em grandes bailes da região. As brincadeiras dançantes animadas pelos
inesquecíveis conjuntos musicais da cidade: Os Megassons, Os Cambitos, Super
Som Sete, dentre outros que me fogem à memória; o
som ensurdecedor dos teares da Fábrica de Seda, na Vila Rezende, e da Fábrica
Boyes, o apito do trem chegando às 22:00 horas na Estação da Paulista, a
algazarra dos engraxates na Praça José Bonifácio – disputando possíveis
clientes para engraxar os sapatos. Em todo alvorecer, a quebra do silêncio
pelos garotos jornaleiros em frente a tipografia do Jornal, aguardando
liberação para as entregas domiciliares. A alegria da garotada ora brincando
nas águas do cristalino Itapeva, ora jogando futebol com bola de borracha,
bolinhas de gude, rodando pião, corrida de pega-pega, batendo figurinhas, entre
tantas outras brincadeiras.
As
meninas, brincando de roda e cantando canções folclóricas - hoje quase
totalmente esquecidas -, pulando corda, amarelinha, jogando porquinhos,
brincando de casinha com bonecas e tantas outras.
De repente...
volto ao presente: o velho Piracicaba, qual esqueleto leuquêmico, curvado sob o
peso da poluição, carregando toneladas de resíduos.
O jardim da
Ponte não mais existe, o negrume do asfalto contrastante com a alvura das
edificações: todo o verde foi engolido... E a velha "Maria Fumaça"? O
bonde? O troar das boiadas na ponte? O cheiro gostoso de melado de cana do
Engenho Central? O bosque da Casa do Povoador, com seu murmurante regato? Os
saraus dançantes com famosas orquestras e conjuntos musicais? O encontro da
boemia nas madrugadas, no Bar Bola Sete? O Jardim da Cerveja com músicas ao
vivo? E as românticas serenatas?
Das cerâmicas da
Rua do Porto, somente altivas chaminés persistem no tempo, como dedos da
natureza em riste, denunciando o homem por suas agressões nefastas à natureza.
O Jardim da
Cerveja cedeu espaço para o glorioso Cursinho “Luiz de Queiroz”; as serenatas
ainda são relembradas com eventuais “Noite da Seresta”, em pontos estratégicos
da cidade o que nos causa pequeno consolo e muito saudosismo; os prédios do
Engenho Central resistem ao tempo e graças ao seu tombamento é hoje ponto
turístico e de encontros sócio culturais da cidade.
Ah! Que
nostalgia, que poder de juventude carrega meu coração; pulsa entusiasmo.
O tempo, na
minha memória, vibra a emoção misteriosa das noites de luar, a estender réstias
de pratas pelas árvores, telhados e o rio, e os acordes de violões seresteiros
nas madrugadas frias. Bailes juninos nos terreiros, muitas vezes à luz de
lampiões, e as brincadeiras com busca-pés. Os bate-papos nas calçadas até altas
horas da noite, sem preocupações com seguranças.
Essas emoções ou
ansiedades povoam o meu espírito, dando-me a sensação de que vivo perenidade.
Empolgado, o
arrebatamento leva-me a cantarolar meio desafinado alguns boleros; enquanto
irradiam ainda mais minhas emoções. Vem-me à lembrança o Trio ITOJUVAL composto
por: Júlio carteiro, Toninho e Valter, presença constante nas noites
piracicabanas e nos programas radiofônicos das: “A Voz Agrícola do Brasil” e
PRD-6 “Rádio Difusora de Piracicaba”, interpretando com maestria o repertório
do saudoso Trio IRAKITAN.
O passado deixou
saudade, nostalgia, há canções que machucam o coração, pela poesia, melodia e
ritmo das notas musicais.
Como é
interessante o subjetivismo humano!
Em meu peito
permanece a nostalgia de ontem, o que será amanhã?
Recomponho à
mente todo o itinerário percorrido nas asas do tempo, e sinto que, no âmago do
meu ser, ainda palpita forte a juventude, ainda há um garimpo de energias
vitais.
Minh'alma é um
relicário guardando inúmeros papéis, sou mais um protagonista no belo
espetáculo da vida, cujo palco é o mundo e o tempo interminável.
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