Marisa F. Bueloni Cadeira no 32 - Patrono: Thales Castanho de Andrade |
Sofro de recordações maravilhosas. Uma delas é a figura da minha madrinha, uma fada risonha, na aurora da minha vida. Tia Anita foi o anjo que Deus designou para assoprar nas minhas inevitáveis feridas. O seu abraço tinha gosto de bolacha recheada e o perfume em suas roupas era o único que nunca me deu dor de cabeça.
Ah, o abraço apertado da minha madrinha, o sobrado amado no bairro da Mooca, as luzes que se viam do terraço no andar de cima, a cidade luzindo ao longe, piscando e dizendo para mim: esta cidade é sua. São Paulo era só minha durante as férias de julho.
O sobrado da tia Anita. O almoço maravilhoso que brotava de suas mãos, o seu riso aberto, a sua alegria, as piadas e brincadeiras, as histórias que faziam nos reunir em roda à sua volta, todos prontos para o impagável desfecho de tudo o que ela contava.
Posso ouvir ainda as gargalhadas estrepitosas, gente tossindo e se engasgando de tanto rir, os comentários de quem queria atestar a veracidade de tudo o que ela havia contado, sem conseguir terminar a frase, por falta de fôlego... Tia Anita fez meu coração pequenino conhecer este mel adorado e sou grata pela lembrança daqueles risos que me transportavam ao céu!
Minha madrinha foi o fato mais belo da minha infância, da minha juventude, da minha vida adulta, da minha existência. Foi nas férias de julho que o mundo se desenhou mais fascinante para mim. Ir de trem para a capital, junto com Neusa, minha melhor amiga de infância e minha melhor amiga até hoje, era um sonho, igualzinho aos dos livros que devorávamos naquele tempo memorável.
A viagem significava uma aventura sem palavras. Viajar de trem era um acontecimento naquele tempo. Disputávamos a janela e tínhamos um acordo tácito: cada uma tinha a sua vez de contemplar a beleza, o sonho. Antegozávamos em silêncio tudo o que iríamos viver. Os trilhos da ferrovia penetravam fundo em nossa alma pequenina.
Sabíamos de cor a delícia de estar com tia Anita, com os primos e os demais tios que lá moravam e que nos recebiam para almoçar e jantar. “E como vai Piracicaba?”, perguntavam meio superiores por morarem na capital. Nós duas, caipiras envergonhadas, mal sabíamos o que responder.
As doçuras da vida também acabam. O apito do trem na Estação da Luz era o som da partida, fazendo meu peito explodir de dor, numa agonia insuportável. Eu evitava olhar para a janela e ver tia Anita acenando o adeus mais sofrido do mundo. Ela abria os braços, ria, acenava, enxugava o canto dos olhos, jogava beijos. E a volta para casa era uma viagem muda e sem paisagem, cheia de sombras e saudades.
O banco duro de madeira do trem era a certeza de que as férias haviam acabado e que o sonho ficara para trás. Adeus terraço do sobrado, livros, brincadeiras, a comida incrível de tia Anita, a sua bondade, seu riso escancarado, um coração que se derramava para todos, os braços sempre abertos, a voz alta, os olhos faiscando uma luz que só eu captava. Ela era só minha, a minha madrinha adorada das inesquecíveis férias de julho.
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