Com muita saudade, aqui homenageamos a
memória querida do
Acadêmico Emérito Samuel Pfromm Netto,
membro do Conselho Editorial desta Revista, publicando
uma poesia inédita de sua lavra – que nos foi
enviada por D. Olga C. Pfromm –
e reproduzindo o texto de entrevista que
concedeu em março de 2002
ao jornal paulistano “São Paulo em foco”:
As
quatro estações
(ouvindo
Vivaldi – 1993)
A
primavera termina.
Flores
murchas pelos campos.
Há paz e
recolhimento.
As aves
silenciaram.
Mas no
pensamento
E no coração
É sempre primavera!
Verão.
Calor intenso.
Ar
pesado. Abafadiço,
Me
sufoca. Não há brisa.
Mas no
pensamento
E no coração
É sempre primavera!
Outono. Folhas
secas
Espalhadas
pelo chão.
Cai a
chuva. Ensopa a terra.
Mas no
pensamento
E no coração
É sempre primavera!
Inverno.
Noite densa.
O frio
gela nas pernas.
Lá fora,
gemidos do vento.
Mas no
pensamento
E no coração
É sempre primavera!
Criança, TV e violência – a influência
da televisão no psiquismo infantil
(entrevista)
O
Prof. Dr. Samuel Pfromm Netto é psicólogo e pedagogo, professor titular de
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Licenciado e doutor
pela Universidade de São Paulo, onde lecionou por muitos anos, realizou estudos
e estágios de pós-doutorado em universidades do País e do Exterior. Presidiu o
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e é membro titular de várias
entidades, como a Academia Paulista de Psicologia, a Academia Paulista de
Educação, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o Pen Centre de São
Paulo, o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, a Société de Médecine de
Paris e outras.
É
autor de mais de uma centena de pesquisas, estudos teóricos e conferências
publicadas em revistas especializadas do País e do Exterior, e dirige a revista
“Estudos de Psicologia”. Tem mais de 25 livros publicados nas áreas de
psicologia, comunicação de massa, mídia educativa, tecnologia do ensino e
pedagogia.
A
seguir, o texto da entrevista exclusiva que concedeu ao jornalista Armando
Alexandre dos Santos, de “São Paulo em foco”:
São Paulo em
foco - Há quanto tempo o Sr. estuda a influência da televisão e dos meios de
comunicação social sobre as crianças?
Samuel Pfromm
Netto -
Em 2003, completarei 50 anos de atividade como pesquisador. Um pesquisador
sempre voltado, desde aqueles longínquos meados do século passado, para o
trinômio criança, mídia e agressão. Minha primeira contribuição à literatura
científica intitulou-se “A criança e o cinema” e mesclava psicologia, pedagogia
e comunicação de massa.
SPEF - Nesses 50
anos houve mudanças nessa área, ou no fundo tudo ficou na mesma?
SPN - Durante estas
quase cinco décadas, muita coisa aconteceu nesse domínio, alternando
substancialmente o quadro que nos era familiar naqueles anos em que o
ex-ditador Vargas retornava ao poder pelo voto popular, era criada a Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, surgia em São Paulo a Cia. Cinematográfica
Vera Cruz, a revista “O Cruzeiro” era a leitura semanal obrigatória dos
brasileiros mais cultos, o Brasil sagrava-se campeão de futebol na Copa
América, Victor Civita fundava a editora Abril e lançava “O Pato Donald” como
revista em quadrinhos, e em 1950 ia ao ar a TV Tupi de São Paulo, primeira
estação brasileira de televisão, captada apenas por algumas dezenas de
receptores existentes na capital paulista. Quanta, quanta coisa mudou, meu
Deus, para melhor ou para pior, nesse meio século!
SPEF - E como o
Sr. via, naquele tempo, o problema?
SPN - O pesquisador
neófito que eu era no início dos anos 50 já se preocupava com os possíveis
efeitos dos filmes cinematográficos na mente e no comportamento das crianças,
seguindo, assim, o caminho iniciado entre nós por Lourenço Filho na década de 1920,
com uma pesquisa empírica de psicologia denominada “A moral no teatro,
principalmente no cinematógrafo” (1928). Mal podíamos imaginar que as
apreensões de Lourenço Filho e as minhas, quanto à influência do cinema
mostrado às crianças, ganhariam tintas muito mais sombrias com o que veio
depois: a televisão que se expandia extraordinariamente nas décadas seguintes,
o surgimento e a expansão do videocassete, os videogames, a Internet no
computador, os videodiscos digitais...
SPEF - Mas sem
dúvida essas invenções podem ser muito úteis para a cultura das massas...
SPN - É claro que
esses prodígios tecnológicos em larga medida podem (e devem) contribuir para a
difusão de conhecimentos e notícias confiáveis, entretenimento sadio, formação
responsável de opinião, educação de gosto e estímulo aos comportamentos
construtivos, positivos ou altruístas. Mas, se conduzidos com inconsciência,
irresponsabilidade, inépcia e avidez de lucros a qualquer preço, à semelhança
daqueles que mercadejam tóxicos, prostituição, jogatina e outras formas de
câncer social, podem ser postos a serviço do que possa haver de pior na
natureza humana. Pior ainda: como certos gazes mortíferos que, no entanto, são
inodoros e dificilmente detectáveis, podem envenenar nossos filhos pouco a
pouco, no recesso dos nossos lares.
SPEF - O Sr. não
receia que o achem um pouco pessimista nesses prognósticos?
SPN - Sei que corro o
risco de ser tachado de apocalíptico, ao reiterar aqui o que venho afirmando ao
longo do meio século de estudos, palestras, artigos, livros, pronunciamentos e
congressos e na mídia em geral. Costumo responder aos que assim me acusam que há
dois tipos de discursos a respeito dos efeitos da mídia, e, particularmente, da
televisão nas pessoas. O primeiro tipo de discurso, que eu respeito mas não
adoto, é o de caráter opinativo, que resulta de elucubrações de caráter
moralista, filosófico, religioso ou de qualquer outra natureza, que argumenta
com lógica e convicção sobre os males que poderão resultar da exposição das
crianças a influências malsãs, mascarada ou disfarçadamente lesivas aos seus
sentimentos, à sua personalidade, ao seu desenvolvimento moral, à formação do
seu caráter, à cidadania responsável e ao bem-estar comum. Alguns dos mais
notáveis pensadores de todos os tempos manifestaram preocupação nesse sentido,
desde a Antiguidade Clássica até nossos dias.
Reitero
que se trata de um discurso pelo qual nutro a maior simpatia, mas não é o tipo
de discurso que nestes cinquenta anos venho usando, a respeito dos efeitos da
comunicação de massa nas pessoas.
SPEF - Qual é,
então, especificamente o tipo de discurso que o Sr. adota na análise do
problema?
SPN - Meu tipo
preferido de discurso é outro, como psicólogo e pedagogo, ou cientista por
formação e convicção, que prefere o arrazoado fundamentado em evidências de
pesquisas científicas escorreitas, em fatos empiricamente constatados, nos experimentos,
nas investigações em laboratório, em levantamentos rigorosos, em estudos
correlacionais, em experimentos de campo, em laboriosas pesquisas longitudinais
como as de Lefkowitz, Eron, Walder e Huesmann desde os anos 60, em trabalho de
meta-análise etc. É, pois, com base nessa grande massa de evidência acumuladas
nos últimos quarenta anos que acredito que devamos argumentar a respeito da
nocividade de exposição da criança à má televisão.
SPEF - Existe
literatura específica sobre isso, a nível de divulgação ao grande público?
SPN - Existe,
felizmente, em nosso idioma um livro magnífico, que tive a honra de prefaciar e
que reúne a mais cerrada e sólida argumentação de base científica sobre os
efeitos da televisão. Seu autor é Guilherme Maurício Acosta-Orjuela e seu
título é “15 motivos para ‘ficar de olho’ na televisão”, editado em Campinas pela
Alínea em fins de 1999. São 182 páginas densas, escritas com objetividade e
rigor científico exemplares, cuja leitura aconselho com a maior urgência aos
pais, aos professores, às autoridades governamentais, aos políticos, para que
abram os olhos. Para que enxerguem o que a maioria não vê ou finge não ver...
Eu
próprio estou finalizando um livro para ser publicado em 2002, igualmente pela
editora Alínea, e que se intitula “A caixa eletrônica de Pandora”. Nele, tal
como Acosta-Orjuela, com apoio nas minhas próprias pesquisas e na fundamentação
empírica acumulada no exterior desde os tempos em que o cinema e depois a TV
deram seus primeiros vagidos até os dias atuais, procuro não só mostrar que o
rei chamado TV está nu, como pior ainda: está envenenando em escala planetária
a nossa espécie, e – o que é mais grave – envenenando em especial as mentes
infantis.
Há
um aspecto que desejo ressaltar aqui, quanto ao conjunto de influências
comprovadamente deletérias que a televisão pode ter na vida da criança, tanto
mais preocupante quanto maior é o número de horas durante as quais ela assiste
à TV, quanto mais violenta, cínica e boçal é a programação a que se expõe, quanto
menor é a carga de ideias, sentimentos, valores, carinho, cuidados e atenção
que ela recebe de adultos que têm importância para ela, quanto mais pobres são
os modelos de pensamento, ação e convivência adultas a que ela está exposta no
dia-a-dia da sua vida. O aspecto que se impõe como extremamente sério, em
relação à análise dos efeitos da má TV na criança, é o da violência.
SPEF - Esse tema
é muito estudado, no Brasil e no Exterior?
SPN - Agressão e
violência são palavras que ganharam, nas últimas décadas, espaço cada vez maior
no âmbito das pesquisas dos psicólogos. Pena que isto não tenha ocorrido no
Brasil. Contam-se nos dedos, e nem sempre têm conta tudo quanto se sabe a
respeito desta problemática não com base em palpitologia, mas em pesquisa
séria, as contribuições brasileiras neste domínio. Venho estudando a agressão
humana desde os anos 60 e creio que fui o primeiro a ministrar uma disciplina, “Psicologia
da agressão”, em nível de pós-graduação em Psicologia. Isto aconteceu no
Instituto de Psicologia da USP, em que lecionei, orientei teses e dissertações
e fiz pesquisas neste âmbito, nas décadas de 1970 e 80. Algumas dessas teses e
dissertações tratam especificamente dos efeitos da televisão nas pessoas, como,
por exemplo, as de Lurdes Ferreira Coutinho (1972), Sílvia Cristina Grunauer
(1990), Carla Witter e outras. Ao longo desse tempo, elaborei um modelo
psicológico a respeito da agressão, que foi objeto de várias publicações, entre
as quais “Psicologia da agressão” (1981) e, há quatro anos, “Frankenstein no
laboratório mental: a psicologia da violência” (1997). Não pretendo, nem os
limites desta entrevista o permitem, fazer aqui uma análise do vasto conjunto
de conhecimentos seguros acumulados até agora a respeito deste tema;
valer-me-ei, no entanto, de uma imagem familiar a todos, a do monstro criado
pelo doutor Frankenstein, que está nas páginas da obra de Mary Shelley. A
autora faleceu há mais de150 anos, em 1851, mas a ficção magistral que criou
permanece conosco mais viva que nunca.
SPEF - Como o
Sr. relaciona Frankenstein com o caso concreto da influência da televisão sobre
as crianças?
SPN - Lá chegaremos.
Vali-me da figura sinistra do monstro criado pelo dr. Frankenstein como um
modelo ou paradigma útil para concatenar uma extraordinária e complexa massa de
resultados de teorização e pesquisa psicológicas que, em sua maioria, datam da
segunda metade do século vinte, a propósito de comportamentos violentos e
agressivos, desde manifestações sutis, disfarçadas, relativamente inofensivas,
até atos de extrema crueldade e brutalidade. Desde, portanto, a agressão
verbal, o beliscão, o tapinha de reprimenda, até o assassínio mais monstruoso –
individual, em série ou em massa.
Violência,
em termos psicológicos, tem a ver com as áreas de psicopatia, patologia social,
psicologia do crime, delinquência juvenil, distúrbios de personalidade,
cuidados no desenvolvimento infantil e influência de modelos no comportamento
humano. Tem a ver particularmente com a psicologia do desenvolvimento moral, da
resistência à tentação e da transgressão de normas. Como já disse antes, não
vou sequer esboçar aqui esse meu modelo ou paradigma da violência que é
fundamentado, além de outros fatores, no processamento inadequado ou defeituoso
de informação na mente humana por desarranjo na “função executiva”, de autorregulação
ou autocontrole, de que somos todos providos, envolvido na auto-inibição do
comportamento para o qual as regiões pré-frontais do cérebro humano parecem ser
especializadas. O descontrole dessa função executiva, em que a inibição deixa
de ocorrer ou se dá qualquer outro tipo de alteração, é como se o monstro de
Frankenstein assumisse o comando do laboratório mental do indivíduo.
SPEF - Quer dizer,
então, que estamos criando monstrinhos e não nos damos conta disso?
SPF - É precisamente
isso. Indo mais além no uso dessa metáfora, estou mais e mais inclinado a crer
que, nestas últimas décadas, a sociedade acabou por engendrar influências,
condições e situações que estão criando à larga pequenos Frankensteins. Já em
1961 Daniel Boorstin, em “The image”, advertia que, se a TV continuasse a
trilhar o descaminho que se esboçava naqueles anos 60 iniciais, em breve o
botequim imundo, com sua boçalidade, suas brigas violentas e sua desfaçatez, e
o prostíbulo, com o sexo aviltado e seu cortejo de misérias e indecências,
estariam dentro da sala de estar das nossas casas perante os olhos da família.
Não é preciso mais do que percorrer alguns dos canais de TV nos dias de hoje,
nos chamados “horários nobres”, para concluir, como previa Boorstin, que a
tasca nauseabunda e o bordel passaram a fazer parte do dia-a-dia dos lares
brasileiros. A verdade é que estamos fabricando, assim, os Frankensteins de
amanhã, em meio à indiferença, à inconsciência, à irresponsabilidade e à
amoralidade de boa parcela de anunciantes, dirigentes e pessoal da mídia, cegos
e surdos à escalada da insensatez, violência e indecência na TV.
SPEF - Que
recomendações concretas o Sr. dá aos pais e aos educadores?
SPN - Há um bom
número de recomendações sensatas e praticáveis a esse respeito, no livro de
Acosta-Orjuela. Lembro aqui, para finalizar, algumas medidas capazes de atenuar
o problema das crianças que são vítimas da “babá-eletrônica”:
1.
Reduzir sensivelmente o tempo de exposição das crianças (e dos adultos) à TV e
itens associados (videocassete, videogame etc), após reconsiderar em família o
modo pelo qual as pessoas usam a TV em casa.
2.
Proporcionar alternativas de atividades dentro e fora de casa, que afastem a
criança da TV.
3.
Estar atento à programação assistida pelos filhos e monitorar tanto o tempo de
TV como o conteúdo do que a criança vê.
4.
Trocar experiências e discutir o problema da influência da TV no lar, na
escola, junto aos amigos.
5.
Discutir os programas vistos com os filhos.
6.
Modificar seus próprios hábitos de ver TV, sendo mais seletivo, refinado,
moderado e consciente.
7.
Fazer com que as crianças vejam os pais lendo livros, jornais e revistas de boa
qualidade, ao invés de ver TV.
8.
Conversar mais com os filhos, ouvi-los, orientá-los, dar-lhes atenção, carinho
e apoio.
Essas
e outras medidas apontam conjuntamente para o reconhecimento de que precisamos
fortalecer, orientar e prestigiar a instituição familiar – opondo-nos
vigorosamente à atual corrosão da unidade familiar e aos efeitos perversos que
decorrem do enfraquecimento da família no desenvolvimento de seus filhos.
SPEF - É um fato
geralmente reconhecido que a TV mudou muito, no Brasil, durante este meio século.
Mudou para melhor ou para pior? Acha que isto tem alguma relação com a temática
da violência nos nossos dias?
SPN - Mudou, sim,
mudou demais. Os avanços tecnológicos, os bons programas, o refinamento em
matéria de imagem e som, a busca de novos caminhos fazem parte do lado
positivo. O que alarma é o lado sombrio – a multiplicação de baixaria, a
escalada da brutalidade, a hipertrofia da licenciosidade e do deboche, a tônica
do “quanto pior, melhor”, para garantir mais pontos (e, portanto, aumentar os
lucros) em pesquisa de audiência. Peço licença para sublinhar que sempre estive
ligado profissionalmente à mídia: primeiro no jornalismo, no rádio, no cinema,
e depois na TV e no vídeo. Fui responsável por muitos programas educativos da
TV Cultura nos anos 70, participei com Nydia Lícia e Wilson Aguiar da
coordenação do inesquecível Vila Sésamo, presidi a Funtevê do MEC no Rio, fui,
no passado, conselheiro da Fundação Padre Anchieta... Sinto-me, pois, à vontade
para dizer que conheço muito bem a TV no Brasil e no mundo, no passado e no
presente. E não escondo a minha desolação e o meu repúdio a essa TV de
achincalhe, de pornoviolência, de sensacionalismo primário, a funcionar como
uma escola que ensina o que possa haver de mais degradante e destrutivo – uma
escola de desrespeito à vida, ao próximo, a nós mesmos. Compare o que se via na
programação típica da TV nos anos 50 ou 60, com o que se vê agora. E atente,
como repetidamente tenho dito e escrito, para os resultados de pesquisas
científicas sérias, sobre os efeitos deletérios da violência, exibida às
catadupas na TV, sobre a personalidade e o comportamento, principalmente no
caso das crianças e dos jovens. Será que as emissoras e seus anunciantes (que
financiam, com a publicidade, essas TVs) ignoram isto?
[Transcrição de “São Paulo em foco”, ano II,
n° 15, março de 2002]
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