Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
Os eventuais leitores destas linhas talvez se surpreendam pelo inusitado da proposta que farei, mas posso assegurar que ela é fruto de um projeto no qual muito refleti. Se for utópico, paciência, parece-me que um pouco de utopia pode fazer bem ao equilíbrio geral da humanidade. E também ao nosso equilíbrio psicológico e emocional.
A ideia me veio a propósito de uma interessante conferência a que assisti, no SESC de Piracicaba, de uma professora da USP, sobre uma nova tendência da culinária mundial, chamada Comfort Food (em tradução livre, alimentação emocional).
O Comfort Food é um desdobramento, uma derivação do Slow Food, movimento que nasceu na Itália, em oposição à proliferação de MacDonalds. O Slow Food já é bem conhecido, tem numerosos seguidores aqui em Piracicaba e não me estenderei sobre ele. Já o Comfort Food é mais recente, nasceu nos Estados Unidos entre gastrônomos e psicólogos ligados ao Slow Food.
Que prega o Comfort Food? Prega que se procure, pelo menos uma ou duas vezes por semana, saborear algum alimento que, emocionalmente, pelo cheiro, pelo sabor, pelo contexto em que é saboreado, nos remeta para a infância, trazendo consigo aquela série de sensações boas, agradáveis, próprias da infância: aconchego, proteção, segurança, carinho, amor, afeto, paz etc.
Isso deve ser realizado sem preocupações dietéticas, sem pressa, sem frenesi, sem emoção. É algo mais passivo e contemplativo do que ativo e racional. O Comfort Food sustenta que, do ponto de vista emocional e psicológico, é enorme o bem que esse costume, desde que praticado duas ou três vezes por semana, pode fazer a todos.
O curioso é que varia muito de pessoa para pessoa, o alimento que mais produz esse efeito. Proust, a partir das madeleines mergulhadas no chá, remeteu seu espírito imediatamente para o ambiente da casa de sua avó, e a partir desse minúsculo episódio deu início à prodigiosa narrativa de Em busca do tempo perdido. Ele descreve o cheiro, o sabor, a fumaça que saía da xícara e, a partir dali, por associação de idéias e de imagens, se desdobra o seu maravilhoso livro...
Para algumas pessoas, o cheiro do café sendo coado desperta esse sentimento. Para outros, será o do pão ou o do bolo de fubá saindo do forno. Para outros, um suculento arroz com feijão. Para outros, será o chocolate, a espiga de milho verde cozida ou assada na brasa, o prato fumegante de canja de galinha, o lambarizinho pescado na lagoa, passado na farinha e frito, ou singelos bolinhos de arroz que a mãe fazia, ou, ou, ou... os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito.
Conheço um ilustre acadêmico, escritor e mestre consagrado, que do alto de seus oitenta e tantos anos não hesita: quando encontra na rua um vendedor de amendoim torrado, religiosamente pára, compra e come em silêncio. Para ele, trata-se de um retorno à infância, no mais autêntico espírito de comfort food.
Conheço um advogado bem sucedido, de meia-idade, louco por aqueles cones crocantes que são vendidos na rua, levados geralmente em latas, por vendedores que chamam a atenção dos passantes com um som estridente característico. Ignoro o nome desses petiscos. Mas sei que são exatamente como eram quando eu era criança. E sei que naquele tempo já eram velhos. Pois esse meu amigo é capaz de parar o carro e sair correndo atrás do vendedor, para não perder a possibilidade de, ele também, retornar à infância. É capaz de faltar a uma audiência, de perder um prazo processual... mas não perde a oportunidade de saborear aquilo. Comfort food...
A professora da USP que fez a palestra no SESC começou pedindo aos assistentes que recordassem um cheiro e um sabor da infância. As respostas foram numerosas e muito variadas. Mas quase todos recordaram, curiosamente, algum cheiro de comida, ou alguma comida com cheiro muito característico.
De fato, trata-se de algo em que olfato e paladar atuam juntos.
Daí surgiu meu desejo de constituir um Museu dos Odores e dos Sabores. A sigla, MOS, em latim significa costume, hábito, uso constante.
Vivemos num tempo de globalização, de cosmopolitização, de padronização. É cada vez mais raro termos o gosto de cheirar e saborear algum alimento feito em casa, com carinho, com capricho, com o condão maravilhoso de nos remeter à infância.
Nas reuniões de diretoria da Academia Piracicabana de Letras, com frequência costumamos levar, de casa, para compartilhar com os colegas e amigos, alguma pequena guloseima caseira. Pode ser um despretensioso bolo de fubá, uma singela torta, uns biscoitos de araruta ou uns deliciosos docinhos sírios, receita secreta de família não revelada nem em confessionário...
Acredito que muito da união que nossa turma vem mantendo, ao longo de mais de dois anos de trabalho, se deve a esse pequeno costume, tão salutar, tão brasileiro e tão fora de moda. Hoje, ninguém mais faz isso, todos preferem comprar um “refri” e um saquinho de salgadinhos ou docinhos hidrogenados...
O desejo que eu teria seria um museu em que se procurasse, sistematicamente, restaurar os cheiros e os sabores de antigamente.
Como fazer isso? Sinceramente, não sei ao certo.
Uma possibilidade seria esse museu ter salas e ambientes montados e decorados de modos variados, que remetessem a outras eras. Um salão do século XIX, uma cozinha de fazenda ou de roça antiga, um armazém “de secos e molhados” (como ainda pegamos em nossa remota infância) com postas de bacalhau empilhadas e imensas tinas cheias de azeitonas em salmoura, um curral de onde se tira leite no contexto (e até com os odores e prosaísmos próprios de um curral), uma cozinha cheia de presuntos e linguiças penduradas (por favor, não me falem em colesterol, sim? Isso é palavrão! Nem em dietas e regimes. Isso é pecado!), um pomar em que as goiabas tenham bicho, mas também sejam saborosas, e não nasçam já pudicamente embrulhadas naqueles saquinhos de papel celofane, mas insípidas e com consistência de isopor... Enfim, são tantas as possibilidades que nem há como enunciar todas aqui.
Os visitantes poderiam, livremente, ser incentivados a se integrarem nesses ambientes, a eles mesmos acenderem o fogão de lenha, a prepararem seus alimentos, a convidarem outros a saboreá-los. Seria, portanto, um museu interativo, onde os visitantes não se limitassem a uma contemplação passiva, mas participassem do ambiente, ajudassem a produzir o ambiente, mergulhassem juntos no passado, com seus cheiros e seus sabores inconfundíveis. Seria um museu com algo de clube, algo de casa de família, algo de espaço de lazer.
Acredito que uma coisa dessas, se descer um pouco do nível dos sonhos em que a estou colocando neste artigo descompromissado e for assentada mais concretamente, sobre bases reais, poderia ser algo fabulosamente incrível.
Esse museu não precisa de acervo grande e caro, o acervo mais precioso dele são as próprias pessoas que o visitam. Local? Qualquer lugar serve. O problema não é esse. O problema é mais transportar psicologicamente as pessoas para esse ambiente, do que transportá-las fisicamente para as dependências climatizadas de um museu ISO-9000, cheio de aparelhos contra incêndio e de placas “é proibido fumar”.
Aliás, um cheirinho de cigarro de palha, nesse ambiente, até não ficaria mal... Ou uma caixinha de oloroso rapé...
Também não precisaria de custosos aparelhos de ar condicionado. Para que usá-los, se os leques e os abanos são tão mais poéticos, além de não produzirem alergias nem infecções respiratórias?
Som? Sim, pode ter som, não há dúvida, desde que ninguém pense em aparelhos estereofônicos ambientados com high fidelity. No máximo, um velho rádio, de válvulas, transmitindo um programa inesquecível como “Nos caminhos da saudade” do meu amigo Fábio Monteiro .
Como veem, o projeto está ainda muito embrionário. Se alguém quiser dar sugestões ou fazer críticas, por favor, não se omita.
Será apenas um sonho?
Talvez. Mas, como escreveu Fernando Pessoa, “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”...
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