Carla Ceres Oliveira Capeleti Cadeira n° 17 - Patrona: Virgínia Prata Grigolin |
− O Zizinho da marmoraria morreu!
Esse “Zizinho” era eu, mas só me chamavam assim depois de morto. Em vida, eu era “aquele moleque do Ziza”, “aprendiz de capeta”.
Foi tanta gente carinhosa vindo chorar no meu velório que desisti de morrer e voltei.
− Catalepsia − diagnosticaram os clientes mais cultos.
− Milagre − concluiu minha mãe.
− Parte com o diabo − sentenciaram os vizinhos.
A família precisou me desterrar para a casa de um tio, porque os clientes começaram a evitar nossa marmoraria. Achavam que eu não dava sorte.
Tio Olavo foi bom para mim. Generosamente aceitou minhas dez horas de trabalho diário, como aprendiz, na fundição. Assim eu não sentiria que estava “morando de favor”. Permitia-me, também, continuar esculpindo nos momentos de folga.
Ah, as esculturas, minha paixão, estiveram sempre comigo! Meu pai restaurava peças de mármore e me ensinou a esculpir usando retalhos de pedra. Na fundição, eu economizava cada centavo para imortalizar, em bronze, minhas pequenas criações.
Aos catorze anos, aconteceu de novo: morri e desmorri bem rápido. Tio Olavo se aborreceu. Era ”má publicidade”. Vendeu minhas estatuetas “pra pagar o prejuízo”. Um comprador, dono de galeria, gostou delas e me arranjou uma bolsa para estudar artes plásticas.
− Se ele vai perder tempo estudando desenho, − disse tio Olavo − é melhor arrumar um emprego de verdade pra se sustentar.
Fui trabalhar na galeria. Trabalho fácil, estudo interessante, muito tempo livre, material à vontade para esculpir, passeios a museus... era o paraíso! E o paraíso é o inferno quando aparece assim, de repente, para quem não está acostumado com a boa vida. Comecei a pensar na morte.
As esculturas vendiam bem... e eu pensando na morte. Eu ganhava prêmios... e pensava na morte. Minha exposição era um sucesso... e a morte me fazia delirar.
Delírio ou visão? Não sei.
Eu ia fazer vinte e um anos e cismei que morreria de novo e, dessa vez, poderiam me enterrar vivo. O terror foi tanto que passei mal. O mundo se transformou numa neblina brilhante. Um anjo de mármore apareceu e falou comigo. Disse que meu mal nunca mais me atacaria se, a cada sete anos, eu doasse uma escultura para um cemitério. Seriam sete esculturas, uma a cada sete anos, o anjo da visão me disse.
A primeira doação foi para meu próprio pai, que faleceu no mês seguinte. Fiz um anjo da saudade. Meu tio Olavo gostou tanto que se ofereceu para me aceitar de volta na fundição. Abri mão da oferta porque estava com exposição marcada fora do país.
O túmulo de minha mãe, morta sete anos depois, recebeu a escultura de uma pranteadora. Eu ainda estava rezando quando tio Olavo bateu no meu ombro.
− Voltou da Europa pra enterrar os parentes? Veio fazer bonito pros jornais mostrarem como o “grande artista” é generoso?
Olhei incrédulo para ele.
− Pare de me olhar com essa cara de abutre! E guarde suas esculturas pro seu enterro! Eu ainda vou viver muito.
E viveu mesmo. Doei outras esculturas para pessoas desconhecidas, a cada sete anos. Meu mal nunca mais me afligiu. Enriqueci, envelheci e esperei. Esperei, ansiosamente, a morte de tio Olavo. Preparei, com todo ódio, a escultura de seu túmulo: a escultura de um velho com olhos maus, deixando cair um livro de contabilidade.
No ano em que eu deveria entregar a sétima escultura, tio Olavo adoeceu. Obstinadamente, aguardei seu falecimento, porém meu aniversário chegou e tio Olavo melhorou.
Morri ao receber a notícia de sua saída do hospital. O velho miserável me enterrou mais que depressa e ainda mandou colocar sua escultura por cima do meu cadáver.
Agora estou enterrado, mas continuo bem vivo. Quem quiser uma prova é só visitar meu túmulo, pois, de sete em sete anos, quando faço aniversário, o livro da escultura se abre e, em vez de contabilidade, suas páginas metálicas ilustram a história da minha vida.
Um comentário:
Nossa, que história
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