Samuel Pfromm Netto |
Em 1988
Piracicaba pranteou o passamento de quatro notáveis intelectuais que marcaram
substantivamente a história da cidade com seus escritos, empenhos e ações.
Faleceram nesse ano Salvador de Toledo Piza Júnior, autêntico gigante da
cultura, doutor honoris causa da
Universidade de Berlim, escritor, professor e pesquisador emérito da ESALQ/USP;
Benedicto Evangelista Costa, o professor Costinha, formado pela ESALQ e pela
Sud e docente desta última por longo tempo, pintor e musicista dos mais
talentosos; Affonso José Fioravante, igualmente formado pela Sud e pela Cristóvão
Colombo, bacharel em direito no Rio de Janeiro, educador notável que exerceu
altos cargos administrativos, com uma folha riquíssima de serviços relevantes
prestados no Piracicabano e na área de ensino em geral. O quarto desaparecido,
no início de dezembro, foi personagem das mais fulgurantes (e controversas) da
inteligência noivacolinense na segunda metade do século passado: João Chiarini.
Talento polimorfo, foi livreiro, escritor, jornalista, advogado, professor,
autoridade das mais respeitadas entre os estudiosos do nosso folclore,
político, agitador popular... A cidade deve-lhe uma biografia detalhada, bem
fundamentada e inteligente, que analise tudo quanto este intelectual de sete
instrumentos fez ao seu tempo e cujo acervo de milhares de livros, periódicos,
folhetos e documentos foi confiado ao Centro Cultural Miss Martha Watts em
2006.
Loquaz,
inquieto, controverso e corajoso, partícipe ativo em uma infinidade de
movimentos e ações de caráter cultural desde meados do século vinte, Chiarini
brilhava como poucos nas rodas da inteligência piracicabana, notadamente entre
a gente moça, desde os anos 40. Incomodava muita gente pela franqueza e vasta
cultura e gozava de merecida popularidade tanto em Pira como no país e no
exterior. Seu largo círculo de amigos e correspondentes (com os quais trocava
cartas facilmente identificáveis pelos envelopes com letras coloridas de
imprensa, espécie de marca registrada de JC), cabe-lhe com inteira justiça o
título de talento fulgurante. Tinha uma memória incrível para fatos, datas,
pessoas, lugares, acontecimentos. Uma enciclopédia viva.
A João Chiarini
devem os piracicabanos a sua primeira e autêntica Academia: a Academia
Piracicabana de Letras, de que foi fundador e presidente vitalício até seu
falecimento. Criou igualmente o Centro de Folclore de Piracicaba (não sei se
sobrevive), com um prestígio que cruzou oceanos e o torna conhecido e
reconhecido como inconteste autoridade nesse domínio, até então marcado por
improvisações, palpites sem fundamento e superficialidade. Há um não mais
acabar de nomes que com ele privaram e corresponderam: Jorge Amado, o cineasta
Alberto Cavalcanti, os Camargo Guarnieri, Sérgio Milliet, os Andrade (Mário,
Oswald), Mário Neme e tantos, tantos outros.
De todos os
galardões que enfeitam a biografia de Chiarini, certamente
a mais notável são a idealização e a efetiva fundação da nossa primeira
Academia de Letras, com essa denominação oficial, há quatro dezenas de anos. Foi a Academia sui
generis porque, ao contrário das demais, que geralmente têm um quadro de
titulares limitado de quarenta integrantes, a de Chiarini tinha um número
ilimitado (!) de acadêmicos e admitia pessoas vivas como patronos. Virtude para
uns, defeito para outros, essa característica singular, a Academia era invenção
e obra de João Chiarini, que se desdobrava na presidência para garantir o
funcionamento da entidade. Após estas quatro dezenas de anos, está na hora de
exumar (que espero não tenha sido perdida) toda a documentação referente à
Academia e contar em pormenores a sua história.
O pioneirismo
de Chiarini em 1972 – há quarenta anos! –, na verdade, deu prosseguimento a uma
história mais ou menos obscura de um bom punhado de iniciativas no âmbito
cultural da Piracicaba de antanho. Iniciativas como a criação da Sociedade
Propagadora da Instrução no século dezenove e o surgimento da Universidade
Popular de Piracicaba em 25 de agosto de 1910. No precioso livrinho que
imprimiu na Bélgica em 1910, M. S. Ferraz aponta a Universidade Popular como
“instituição respeitável e utilíssima”, que desenvolvia um programa ambicioso
de palestras e cursos sobre literatura e ciências, ensino de idiomas e saraus
lítero-musicais de que participavam os mais expressivos nomes da vida cultural
e artística da cidade (“Piracicaba e sua Escola Agrícola”, 1912). Em 1925
surgiu a Sociedade de Cultura Artística, liderada por Fabiano Lozano e sob a
presidência de Antônio dos Santos Veiga. Outros tempos... Em 1939 nasceu a
Biblioteca Pública Municipal, que passou a agasalhar iniciativas, reuniões e
eventos que marcaram o passado cultural piracicabano. Quando a sua sede passou
a ser a área superior do Teatro Santo Estêvão, ali fundamos, com o apoio de
Leandro Guerrini e a participação de um grupo de saudosos amigos e entusiastas,
o Clube Piracicabano de Cinema, responsável por projeções de filmes,
conferências, debates, cursos e outros eventos de caráter cultural, entre os
quais palestras verdadeiramente inesquecíveis de Sérgio Milliet, Dulce Salles
Cunha, Carlos Ortiz, Almeida Salles e muitos outros.
No início dos
anos cinquenta, um grupo de moços unidos no entusiasmo por temas de literatura,
arte e cultura em geral reunia-se na redação do “Jornal de Piracicaba”, à rua
Moraes Barros, dando origem à página dominical “Literatura e Arte” no Jornal de
Piracicaba, que coordenei juntamente com Oswaldo de Andrade.
Das iniciativas
e realizações na Piracicaba dos anos sessenta, sob o patrocínio do Departamento
de Cultura (com C maiúsculo) do município, fez parte o inesquecível Simpósio de
Estudos Piracicabanos, realizado em novembro de 1967, com sessões sobre artes e
literatura, folclore, lenda, história e genealogia, educação e ensino,
geografia e geologia de Piracicaba, medicina e assistência social..., sendo
criado nessa ocasião o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, sob a
liderança de Archimedes Dutra, Jair de Toledo Veiga e Flávio Moraes Toledo
Piza. Tempos saudosos...
Clubes,
associações, instituições e atividades como as que são aqui mencionadas
refletem inegavelmente, ao longo de mais de um século, o espírito
Acadêmico-Cultural (com A e C maiúsculos!) que, num sentido lato, caracteriza
as autênticas Academias, já que esta designação,
nestes últimos tempos, passou a identificar entidades para práticas esportivas,
escolas de samba e de capoeira e até academias de secos e molhados.
Bem haja, pois,
a Academia Piracicabana de Letras que, nestes começos de novo milênio, recupera
o sentido original da denominação e retoma em Piracicaba uma tradição caríssima
e venerável cujas raízes estão solidamente fincadas no solo fecundo do Jardim
de Academos, o solo da cultura clássica dos tempos de Platão e Aristóteles.
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