Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
O
Arquipélago da Madeira teve – e de certa forma ainda tem – uma enorme
importância na história do Brasil e na história de São Paulo. A participação
dos madeirenses em nossa história é fundamental. Disse Gilberto Freyre que a
Madeira é a irmã mais velha do Brasil. Isso é verdade. O arquipélago da Madeira
foi descoberto (oficialmente, pelo menos) 80 anos antes de Cabral (também
oficialmente...) descobrir o Brasil. Mas – segundo o mesmo Gilberto Freyre – a
Madeira nunca tratou o Brasil como uma irmã trata seu irmão. Na realidade ela
nos tratou com o carinho, com os desvelos, com os sacrifícios com que uma
verdadeira mãe trata seus filhos.
Se nós percorrermos o longo e glorioso
itinerário histórico da Madeira, veremos que sua história foi um longo e
desinteressado sacrificar-se pelo irmão maior – como também, em medida menor,
pelas outras parcelas do Império luso, que são outros tantos irmãos da Madeira.
O Brasil, na verdade, foi o grande beneficiário da abnegação madeirense.
Curiosamente, e injustamente, ressalte-se,
essa influência enorme da Madeira na história do Brasil é esquecida, é
menosprezada entre nós. E mesmo na Madeira pouca gente tem noção da amplitude
desse sacrifício multissecular. Fala-se muito, entre nós, da influência
açoriana, especialmente no Nordeste, em São Paulo , e sobretudo na colonização de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Realmente, foi muito grande a influência
açoriana, e nunca a louvaremos suficientemente. Mas da influência madeirense
quase ninguém fala...
O Arquipélago da Madeira é composto, como
é sabido de todos, pela Ilha da Madeira (a maior e mais importante); pela Ilha
de Porto Santo; e pelas desabitadas Ilhas Desertas e Ilhas Selvagens.
A Ilha da Madeira, que mais diretamente
nos interessa nesta exposição, foi descoberta em 1420 por João Gonçalves Zarco
e Tristão Vaz, escudeiros do Infante D. Henrique, o Navegador. Já no ano
anterior os dois, em companhia de Bartolomeu Perestrelo, haviam chegado à Ilha
de Porto Santo. Mas só no ano seguinte chegariam à Madeira. Bartolomeu
Perestrelo foi nomeado capitão donatário de Porto Santo. Quanto à Madeira, ela
foi dividida, mais ou menos no seu sentido longitudinal, pelos dois
descobridores. Zarco ficou com a parte sul, que viria a ter como capital
Funchal, e Tristão Vaz ficou com a parte norte, sediando-se em Machico.
Do ponto de vista topográfico, as duas
ilhas não poderiam ser mais diferentes. Enquanto Porto Santo é seca e pouco
fértil – diz-se que constitui como que um prolongamento do Saara – a Madeira é
montanhosa e de solos quimicamente muito férteis, se bem que topograficamente
só com grande dificuldade aproveitáveis para a agricultura.
Para se ter uma ideia dessa dificuldade,
note-se que a Ilha da Madeira é cerca de 600 vezes menor que o Estado de São
Paulo. Toda a ilha caberia perfeitamente dentro da área do município de São Paulo.
E, no entanto, é cortada no sentido longitudinal por uma cordilheira
elevadíssima, com diversos picos de mais de 1500m de altitude, e um deles, o
Pico Ruivo, chega a 1861m.
O resultado é que dessa ilha, já de si
pequena, apenas 20% do solo pode ser aproveitado, e mesmo assim somente à custa
de esforços inimagináveis para os homens de hoje em dia. Mas foram esforços à
altura dos nossos maiores madeirenses.
Quando os portugueses chegaram à Ilha, ela
era revestida de densas florestas. Numa primeira fase, foi preciso
desbastá-las, para se poder cultivar a terra. Velha tradição, certamente muito
exagerada, diz que toda a ilha foi incendiada por ordem de João Gonçalves Zarco,
num incêndio que teria durado 7 anos. Que houve incêndios, é fato. Que houve
imprudência nesses incêndios, é bem possível que tenha havido. Mas dizer que
toda a floresta da ilha foi incendiada, isso é certamente exagero, porque é
fato que a madeira da Ilha da Madeira foi explorada durante muito tempo pelos
portugueses.
Tanta lenha de qualidade, em toras grossas
e compridas, foi levada para Portugal (geralmente como lastro de embarcações)
que muitas casas de um ou dois andares, reforçadas com toras trazidas da Ilha,
puderam receber mais um ou dois pisos. E isso chegou a modificar o aspecto
arquitetônico da cidade de Lisboa, como nota Azurara, que fala das "grandes alturas das casas que se vão
ao céu, que se fizeram e fazem com a madeira daquela ilha" (citado por
Enzo da Silveira).
Também a madeira de lei produzida pela Ilha
permitiu ao Infante D. Henrique a construção de embarcações maiores, que
desbravaram os mares de todo o mundo. Zarco e Tristão chegaram à Madeira em
duas barcas de apenas 9
metros de comprimento, com uma única vela redonda, que
não permitia a navegação contra o vento. Em parte graças à madeira da Ilha
puderam ser construídas embarcações maiores, as famosas caravelas, com um
sistema de velas que lhes permitia navegar contra o vento.
Era – notem os leitores – a Madeira que
iniciava o cumprimento de sua vocação histórica: despojar-se de suas riquezas e
empobrecer em benefício de outras parcelas do império luso. É a vocação da irmã
mais velha que se sacrifica como se fosse a mãe...
Mas, prossigamos. Desbastada a floresta,
era preciso aproveitar a pouca terra disponível, para alimentar os dois
donatários, suas famílias e os numerosos colonos que eles levaram, a suas
custas, para povoar a nova terra. Aí apareceu um problema terrível. Na Madeira,
chovia muito, chovia até torrencialmente. Mas a água caía e não era retida pelo
solo, escorrendo rapidamente para o mar e arrastando consigo a camada superior
da terra, num processo de erosão que poderia ser fatal.
O que fizeram os portugueses para vencer
esse problema? Planejaram cuidadosamente, e executaram laboriosamente um
sistema de irrigação artificial que até hoje desperta admiração nos engenheiros
que o examinam: o sistema das "levadas".
As levadas são regatos artificiais feitos
para distribuir a água por toda a superfície agricultável da ilha. No alto das
montanhas, a 600, 800 e até 1000
metros de altitude, foram feitos grandes reservatórios
apropriados para reter a água das chuvas. E essa água era, depois, distribuída
por riozinhos artificiais, condutos abertos que desciam as montanhas com uma
inclinação muito suave, de modo a descer vagarosamente. As levadas têm,
geralmente, menos de um metro de largura, e 50 ou 60 cm de profundidade. São
talhadas no flanco das montanhas, muitas vezes em pedra viva e beirando
precipícios de centenas de metros. Elas vão dando voltas às montanhas, sempre
com inclinação muito suave, e por vezes se estendem por mais de 50 km . Frequentemente a
topografia exigia que as levadas atravessassem túneis (alguns com mais de um
quilômetro de extensão) para poderem prosseguir seu rumo. Eram os chamados
"furados".
Imagine-se a extrema dificuldade que isso
representou, para os recursos rudimentares da época! A maior parte das levadas, com efeito, foi
realizada ainda nos séculos XV e XVI, pela iniciativa privada dos donatários e
outros sesmeiros, que depois vendiam a água aos que dela faziam uso. Só no
início do século XIX o Estado português principiou a fazer levadas, que até
então eram obra de particulares. As levadas madeirenses foram tão bem
planejadas e tão bem executadas que ainda hoje, mais de 500 anos decorridos,
estão funcionando e servindo perfeitamente.
Ter assim domado as águas na Madeira foi
uma obra hercúlea, uma obra ciclópica, que bem mereceria ser mais conhecida e
louvada a nível mundial.
Não foi só essa a obra dos madeirenses no
campo da engenharia. Outra tarefa, talvez não menor, foi domar as montanhas. De
fato, as montanhas da Madeira eram tão íngremes que não se prestavam à
agricultura. Mas, à custa de esforços inenarráveis, os madeirenses foram
esculpindo suas montanhas de forma a constituir patamares, ou socalcos,
perfeitamente planos, sustentados por sólidos contrafortes de pedra. O
resultado dessa obra titânica foi que a Madeira pôde aproveitar suas terras
(que pela composição química eram muito férteis, de origem vulcânica), e
começar a produzir alimentos de climas diversos, conforme a diferente altitude
dos terrenos: desde coqueiros, ananases e bananas, de clima tropical, até uvas
e trigo, que requerem climas mais temperados. Também esses contrafortes e esses
socalcos ainda servem hoje em dia, tendo resistido a mais de 500 anos de chuvas
torrenciais...
Mais uma vez, permitam os leitores que eu
pergunte: por que, em nível mundial, não é mais conhecida e louvada essa
obra-prima do engenho humano, da persistência humana?
No início do século XVI, o grande Afonso
de Albuquerque concebeu e chegou a dar os primeiros passos para realizar um
imenso projeto que poderia ter dado um golpe de morte ao Islã: abrir um canal
que comunicasse o Mediterrâneo com o Mar Vermelho, de modo a facilitar, à
Cristandade, o acesso ao Oriente sem precisar dar a imensa volta pela África. Ou
seja, construir o que depois foi o Canal de Suez, em pleno século XVI! Albuquerque
chegou também a realizar estudos para um projeto ainda mais audacioso: ele
planejou desviar o curso do Nilo, de modo a secar o Egito e, assim, quebrar o
ponto central da forte tenaz muçulmana. Pois bem, esses projetos, que pareceriam
impossíveis, não eram impossíveis. Em primeiro lugar, porque para homens como
Albuquerque nada é impossível. Em segundo lugar, porque existiam os
madeirenses. E Albuquerque, em carta ao Rei D. Manuel, propôs que essas obras
ciclópicas fossem confiadas aos madeirenses, porque estes já tinham dado
provas, na sua pequena ilha, do que eram capazes.
Prossigamos. A Madeira começou a plantar
açúcar e a enriquecer-se prodigiosamente, ainda em meados do século XV. Mas,
por mais que atraísse forasteiros (e foram numerosos os portugueses do
continente e, mesmo, estrangeiros que para lá acorreram nessa fase), a
população ainda era muito reduzida.
Por volta de 1460, os habitantes da
Madeira eram somente 2310. O Duque D. Fernando ─ sucessor do Infante D.
Henrique na administração da Ordem de Cristo, que exercia jurisdição temporal e
espiritual sobre a Madeira ─ instituiu então um imposto que deveria ser pago,
em trigo, somente pelos homens solteiros, para incentivá-los a se casarem. O
resultado dessa medida foi eficacíssimo. 50 anos depois, a Madeira já tinha 15
mil habitantes. O crescimento, em cinco décadas, foi da ordem de 650% – um dos
maiores verificados na história. E, a partir daí, a população foi crescendo cada
vez mais, pois os madeirenses habitualmente casam cedo e são muito prolíficos.
A Madeira conheceu, então, um curto
período de grande riqueza e prosperidade, graças ao seu açúcar de excelente
qualidade, que era vendido para a Europa inteira. Também os vinhos finos da
Madeira passaram a ser consumidos na Europa, sendo muito valorizados.
Dois curiosos indícios da fama dos vinhos
madeirenses: numa das peças de Shakespeare, um personagem, Sir John Falstaff,
aparece vendendo sua alma ao demônio em troca de uma perna de frango e um
cálice de vinho da Madeira. E quando o duque de Clarence, na Inglaterra, foi
condenado à morte por se ter envolvido numa conspiração contra a coroa, teve o
privilégio de escolher como seria executado. E, segundo se conta, ele teria pedido
para morrer afogado num tonel de vinho Malvasia, da Ilha da Madeira... O pior é
que o coitado foi realmente afogado, mas de cabeça para baixo, de modo que
estragou o vinho e nem sequer pode saboreá-lo na hora da morte!
Em 1514, ainda nessa fase de grande
prosperidade, foi criada a Diocese do Funchal, que foi, até 1533, a maior
diocese do mundo, a maior diocese que já existiu em toda a História da Igreja
Católica. O Bispo da Madeira tinha jurisdição, conferida pelo Papa, sobre todos
os domínios ultramarinos portugueses. Até onde chegasse uma caravela
portuguesa, lá chegava a autoridade desse Bispo: Brasil, África, Índia, Extremo
Oriente. O Brasil inteiro fez parte da Diocese do Funchal até 1551, quando foi
criada a Diocese da Bahia.
Ora, que fez a Madeira nesse período
áureo? Guardou ciosa e egoisticamente para si suas imensas riquezas, para
fruí-las como merecida recompensa pelos trabalhos colossais que já tinha
realizado? Não. Mas portou-se como mãe de seus irmãos menores. Sacrificou-se
por eles. Ofereceu a eles seus tesouros, sem se preocupar com a concorrência
que eles mesmos lhe fariam num futuro muito próximo.
O açúcar, a maior riqueza da ilha, foi
levado, por madeirenses, inicialmente para os Açores, cuja primeira ilha foi
atingida pelos portugueses em 1432. Aliás, a Madeira contribuiu poderosamente
para o povoamento e colonização dos Açores numa fase em que ela própria lutava
contra a carência de população. Em 1473, Rui Gonçalves da Câmara, filho de João
Gonçalves Zarco, adquiriu os direitos sobre a capitania de São Miguel dos
Açores, e para lá foi com sua gente, dando assim início à Diáspora Madeirense.
Não foi só para os Açores que a Madeira
exportou o açúcar e, com ele, a tecnologia da sua fabricação. Também para Cabo
Verde, Canárias, São Tomé e, sobretudo, para o Brasil. No Brasil, as condições
favoráveis permitiram que o açúcar fosse produzido em muito maior escala e a
preço muito mais reduzido, o que determinou a quebra da economia madeirense. Já
no final do século XVI o Brasil havia ultrapassado a Madeira na produção
açucareira.
A Madeira, que havia se desgastado muito
plantando quase exclusivamente cana-de-açúcar nas partes mais baixas, e uvas
nos socalcos mais elevados, e que, por outro lado, ia tendo sua população cada
vez mais numerosa, começou a sofrer as consequências disso.
Excetuando o período da Guerra de
Pernambuco, quando caiu a produção brasileira e a madeirense teve uma relativa
valorização, foi de decadência o século XVII. Em certas fases críticas, chegou
a haver fome na Madeira. A base da alimentação popular era o inhame – o cará –
alimento nutritivo mas de produção muito incerta, pois depende das chuvas e do
clima. O resultado é que em períodos nos quais as condições climáticas eram
desfavoráveis, houve fome, e fome terrível.
Os Açores produziam ótimo trigo, mas esse
trigo era reservado para outras partes do Império luso que passavam por
necessidades prementes. E na Madeira houve fome. O recurso dos madeirenses era
apresarem navios carregados de mantimentos que por alguma razão entravam no
Funchal. Era esse o recurso desesperado. Esses mantimentos eram pagos, não eram
roubados, pois paradoxalmente não era dinheiro que faltava, era comida.
Em 1695, num momento de mais terrível
aflição, os habitantes do Funchal, desesperados, resolveram recorrer a Nossa
Senhora do Monte. A imagem da Virgem foi levada, do seu santuário para o centro
da cidade, em
procissão. A Virgem valeu aos madeirenses, e justamente nessa
hora entraram no porto três navios, abarrotados de trigo e de farinha. Foi a partir
daí que a devoção a Nossa Senhora do Monte, que já era tradicional na Madeira,
teve grande incremento e se transformou na devoção marial por excelência, do
madeirense.
Aonde chegaram os madeirenses, lá chegou a
devoção a Nossa Senhora do Monte. Até no longínquo Havaí existe um santuário de
Nossa Senhora do Monte, erigido por descendentes de madeirenses. E aqui na Casa
da Ilha da Madeira de São Paulo, num altar, estão, lado a lado, duas imagens de
Nossa Senhora, a do Monte e a de Fátima.
No século XVIII foi-se acentuando o regime
de fomes periódicas. Um estudo de meados desse século revela que a alimentação
que os madeirenses obtinham, ou da própria ilha, ou trazida de outros locais,
era suficiente apenas para alimentar 20 mil pessoas. Ora, a população da ilha
era, nessa altura, de 50 mil pessoas, do que deduz que, em média, o madeirense
comia apenas 40% daquilo que precisava comer.
Sem dúvida, pode ser um pouco exagerado
esse cálculo, pois as estatísticas desse tipo habitualmente ignoram outros
meios ─ digamos, paralelos ou alternativos – de se obterem alimentos: hortas
caseiras, pequenas criações etc. Ainda hoje, quem lê sem espírito crítico
certos estudos da FAO ou certas publicações demagógicas acredita que, no Brasil
atual, 30 ou 40 por cento dos habitantes são desnutridos!...
Mas, exageros à parte, não deixa de ser uma
triste realidade que houve fome na Madeira, e que, em consequência disso era
elevada a taxa de mortalidade. Mas, graças à tradicional prolificidade dos
madeirenses, a população continuava a crescer. E, portanto, a agravar o
problema das fomes periódicas.
Foi então que a Coroa portuguesa resolveu
realizar a transferência maciça de madeirenses (como também de açorianos) para
o sul do Brasil. Foram os famosos "casais" que povoaram a ilha de
Santa Catarina e a região do Porto dos Casais (atual Porto Alegre). Com isso,
não somente se aliviava o problema populacional das ilhas, mas também se
garantia a ocupação do sul do Brasil, disputado à Espanha. Era mais um serviço
que a Madeira prestava ao império luso e ao Brasil.
Note-se um pormenor muito importante: essa
transferência dos casais teve início em 1747, precisamente na fase de maior
esplendor das Minas. Era pelas Minas Gerais que os imigrantes portugueses
sentiam maior atração, pois lá é que o enriquecimento podia ser mais rápido.
Mas foi para o sul, para o que era então a parte mais dura da tarefa que foram
os madeirenses, como também os seus irmãos, os não menos heroicos açorianos.
Um outro aspecto que deve ser lembrado,
ainda na linha da dedicação do Arquipélago da Madeira a seus "irmãos
menores", e especialmente ao Brasil, é a participação intensíssima de
madeirenses para a defesa do Império luso contra seus inimigos. Aqui no Brasil
foi enorme a participação deles nas lutas contra franceses, no Rio e no
Maranhão, e contra holandeses, na Bahia e em Pernambuco. Entre
muitos outros, basta lembrar os nomes do João Fernandes Vieira, nascido na
Madeira, e André Vidal de Negreiros, cuja mãe era natural de Porto Santo.
Houve vários madeirenses que, na fase pior
da luta contra os holandeses, quando parecia definitivamente implantada a
dominação holandesa em Pernambuco (a ponto de o Padre Antônio Vieira considerar
fato consumado e irreversível a existência de um Brasil holandês), armaram
homens, fretaram navios e vieram por conta própria fazer guerra aos invasores. No
Maranhão, um madeirense encabeçou a luta contra os franceses e os expulsou
definitivamente. Assumiu o governo da capitania por aclamação popular e
entregou-a depois às autoridades mandadas pelo Rei. Com isso, ficou arruinado
economicamente, mas cumpriu o que julgava ser o seu dever.
Ao longo dos séculos XIX e XX, ainda
prosseguiu a Diáspora. Para o Brasil, e depois para a Austrália, para a África
do Sul, para o Canadá, para os Estados Unidos, a Madeira foi exportando o que
tinha de melhor, ou seja, precisamente seus filhos mais capazes, com mais
espírito empreendedor e iniciativa.
E por toda parte se foi fixando o
emigrante madeirense, levando consigo o drama e a tragédia que representa, para
todo ser humano cônscio de suas origens e de suas tradições – e o madeirense é
bem assim – o romper violentamente com o torrão natal, sem nunca esquecer dele
e levando sempre na alma a nostalgia do lar paterno, da aldeia nativa.
Maria Lamas registra em “O Arquipélago da
Madeira, maravilha atlântica” numerosos casos de emigrantes que viajavam à
procura de melhores condições de vida, deixando na Madeira esposa e filhos, na
esperança de mais tarde poder regressar ou, talvez, chamá-los. Frequentemente acontecia
– sobretudo no passado, quando as comunicações eram mais difíceis – que a
família nunca mais tinha notícias. Muitos, aliás, dos que partiam eram
analfabetos e nem lhes ocorria escrever para suas esposas, também analfabetas. Havia
casos de rapazes que casavam e partiam para o estrangeiro logo na semana
seguinte ao casamento. A esposa esperava, paciente e fielmente, o retorno do
marido, vestida de preto, como se fosse viúva, até que, 30, 40 ou 50 anos
depois, se convencia de que era realmente viúva. A "viuvinha", jovem
vestida de preto, acabou se tornando figura típica no folclore madeirense. São
os dramas da emigração...
Curiosamente, os emigrantes madeirenses,
onde quer que estejam, na hora de casar tendem a procurar moças madeirenses, ou
de origem madeirense. Essa tendência é muito antiga. Os jornais da Madeira
frequentemente publicam, ainda hoje, anúncios de madeirenses bem sucedidos na
vida que, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, ou em qualquer outra
parte, desejam casar e pedem, por anúncios, que se apresentem candidatas.
Foi muito grande a participação da Madeira
no Brasil, e especificamente em
São Paulo , na constituição populacional. Numerosas famílias
brasileiras têm origem mais remota ou mais próxima, na Madeira. Pode-se com
segurança afirmar que não há família tradicional paulista, mineira ou
nordestina (para falar só nestas) que não tenha sangue madeirense nas veias.
Muito resumidamente, foi assim que se
formou a alma madeirense. O caráter e a têmpera do madeirense se forjaram na luta,
no enfrentamento dos obstáculos da natureza, das circunstâncias desfavoráveis
da economia.
Essa a raiz das grandes qualidades do
madeirense: coragem, gosto pela aventura, espírito empreendedor, amor ao
trabalho, à família e ao torrão natal, lealdade, espírito independente e até
desafiador, sem embargo de ser polido e delicado. Como todos os viajantes da
Madeira assinalaram, o madeirense, mesmo quando rústico, é extremamente
cuidadoso em tratar bem os outros.
Um viajante inglês de princípios do século
XIX notou que os madeirenses tiravam o chapéu para qualquer senhora com quem
cruzavam na rua, mesmo que não a conhecessem. E não tiravam o chapéu para as
estrangeiras. Perguntou o porquê disso e ficou sabendo que os madeirenses
gostariam de tirar os chapéus também para as estrangeiras, mas como haviam
notado que os estrangeiros eram muito pouco educados e não tiravam o chapéu
para as senhoras portuguesas a quem não haviam sido apresentados, os
madeirenses haviam resolvido lhes pagar na mesma moeda.
Realmente, o espírito madeirense é
delicado e facilmente tende para o lirismo. A poesia popular madeirense é rica
e sugestiva.
Além de delicado, o madeirense é refinado.
Até pessoas muito simples, por vezes analfabetas, possuem um senso artístico
notável e um bom gosto que encanta os estrangeiros que visitam a Madeira. Basta
lembrar a tradicional arte dos bordados e os encantadores jardins da Ilha,
cobertos de flores maravilhosas.
Curiosamente, em meio a tanta luta e a
tanta tragédia, o madeirense não é triste. Ele é alegre, gosta de cantar, de
dançar. Seu folclore é riquíssimo. Essa é a alma madeirense. Essa a alma que
desejo homenagear, por tudo quanto a Madeira, nossa irmã mais velha, fez pelo
Brasil e fez por São Paulo.
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