O acadêmico Cassio Camilo Almeida de Negri teve seu conto "O velho médico" selecionado em terceiro lugar no concurso literário do departamento cultural da Associação Médica Brasileira - AMB
O VELHO MÉDICO
Cássio Camilo Almeida de Negri
O médico aposentado estava sentado na
cadeira da cozinha, braços apoiados na mesa, e a sua frente, uma caneca de café
com leite, que bebericava vagarosamente e na qual amolecia as torradas que
comia.
Enquanto mastigava sem pressa, os
pensamentos borboleteavam na mente do velho doutor.
Lembrou-se que no início da carreira
ainda dava toda atenção ao paciente, conversando bastante, colhendo informações
valiosas para o tratamento, palpando, tocando com as mãos, toque este que
parecia fazer parte da cura, como as mãos divinas do Cristo a curar o lázaro.
O tempo foi passando, a tecnologia
crescendo, veio a ultrassonografia, a tomografia computadorizada, a era digital
e o paciente foi transformado em um numero:
- É o paciente do leito trinta da
pediatria do pavilhão dois, diziam no hospital, não era mais o Joãozinho.
Não que a tecnologia tenha sido má, pois
descobriu muitas doenças quando ainda tratáveis. O problema é que a tecnologia
é mal usada, devassou os meandros do corpo e encobriu as belezas da alma.
Lembrou-se também da pressa. Quanta
pressa tivera na correria do dia-a-dia indo do consultório ao hospital, aos
plantões e aos vários empregos. Nem tivera tempo para si e para sua família.
Tinha tanta pressa que o tempo também
acelerara. Os filhos cresceram tão rápido, nem pôde levá-los no primeiro dia de
aulas, nem na primeira comunhão, quantas vezes prometera ensinar a andar de
bicicleta...tantas que acabaram aprendendo sozinhos. E a casa de bonecas no
quintal, que nunca construiu?
Vieram os netos e tudo se repetiu.Cresceram
e ele nem percebeu.
Até o gato, quando vinha se aconchegar
ronronando ao seu lado, era espantado,pois o doutor não queria pegar
toxoplasmose e muito menos ser atrapalhado em seus estudos quando estava de
“folga” em casa.
Agora em seus noventa anos, estava ali
sozinho, pois a esposa já falecera, os filhos e netos há muito haviam voado
para fora do ninho e assim como ele nunca sentira suas faltas, também não
sentiam a falta de um velho esculápio tomando café com leite e torradas. Por
sua mente vieram versos mal lembrados de Drummond:
- E agora, doutor
A festa acabou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, doutor
Pra onde?
Comeu mais um pedaço de torrada e café
com leite.
Agora, sem pressa, tinha todo o tempo do
mundo, mas não tinha mais o mundo para preencher o seu tempo.
Pensou que tudo o que aprendera em
medicina, também não significava mais nada, tudo estava ultrapassado, o novo
conhecimento substituíra o antigo.
Empurrou a caneca de café com leite para
o lado, colocou a testa sobre os braços cruzados em cima da mesa e assim ficou
até que duas lágrimas rolaram pela sua face.
A vida fora em vão...
Sob a forma de uma borboleta azul, um
pensamento aos poucos veio se aproximando, titubeante, mas foi crescendo, até
iluminar sua mente como um clarão multicolorido. A borboleta se transformou
naquela pacientezinha de quatro anos que há mais de sessenta anos não pudera
salvar, e que em seus últimos momentos beijara-lhe a face e derramara algumas
lágrimas, tocado que fora pela compaixão.
Sorriu, montou nas asas da borboleta,
deixou seu casulo e voou, voou até desaparecer no horizonte da vida.
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