João Umberto Nassif Cadeira n° 35 - Patrono: Prudente José de Moraes Barros |
O fato é verídico, ocorreu na década de 70. Os nomes dos envolvidos
foram alterados por razões óbvias.
Os ponteiros do relógio ficaram mais lentos no final daquela tarde de
muito calor. O tempo não passava para os funcionários daquela repartição
pública. Olavo Casqueiro, arquivista público, movimentava-se de um lado para
outro, num interminável passeio. Sorriso dependurado no rosto, andar gingado,
sapato macio, camisa social com as mangas arregaçadas soltas por fora da calça.
Os cabelos negros pareciam estar sempre empastados de brilhantina, formando um
imenso topete. Até mesmo a sempre carrancuda chefe da repartição, Dona
Deolinda, estava entregue ao sabor de mesmice reinante no ar. Como chefe,
sugeriu a Olavo:
– Conte aos meninos aquela sua história. Conte, Olavo!
Meninos, era um grupo de estagiários que seguiam o ritmo daquele
departamento.
Sentaram-se todos em volta de uma mesa e Olavo passou a narrar.
Ele era motorista, pilotava um Fusca de chapa branca, veículo oficial,
a serviço dos funcionários que necessitavam se deslocar para atender as funções
do departamento. Todo final de tarde, ele e o compadre Tião, também motorista
como ele, paravam no boteco do Mané Português para tomar umas “brejas” (era
assim que eles chamavam a cerveja estupidamente gelada). Uma sexta-feira, final
de expediente, antes de recolher o veículo à garagem Olavo e Tião bebiam
animados o precioso líquido. Após muita animação, catalisados pelo álcool,
surgiu a brilhante ideia, e Olavo disse:
– Tião, com esse calor um banho de mar seria muito bom!
Tião respondeu:
– Ia ser uma delícia, mas em São Paulo não tem mar!
Olavo retrucou:
– Tião, “ocê” recolhe a sua viatura e nós vamos de Fusca até Santos, é
logo ali, compadre! A vida é para ser vivida!
Dito e feito. Algum tempo depois os dois desciam pela rodovia Anchieta
rumo a Santos. Felizes e gargalhando, sem medir as consequências.
Logo estavam na Baixada Santista, e decidiram parar em um quiosque à
beira da praia para tomar mais uma “breja”, já embalados pelo clima de festa
dos turistas, muita gente passeando pelas calçadas. O único problema era achar
vaga para estacionar o veículo. Tião sugeriu:
– Compadre, põe a viatura em cima
da calçada, é chapa branca.
Assim foi feito. A noite estava agradável.
– Isso é que é vida! – disse
Olavo.
– Vidão! – arrematou Tião.
As ondas do mar eram um convite para um banho. Noite escura, ninguém
iria perceber que os dois tinham deixado suas roupas no carro e usavam apenas
cueca. Nadaram até cansar. Voltaram à praia. Tião foi buscar mais duas garrafas
de cerveja.
Contemplando o espetáculo que a natureza oferecia, cansados, relaxados
pelo efeito do álcool, adormeceram na areia.
Sequer perceberam que um caminhão do Departamento de Trânsito da
Cidade de Santos estava rebocando o carro oficial que tinham estacionado na
calçada, levando em seu interior roupas e pertences de ambos.
O nascer do sol despertou Olavo, que, sem ainda lembrar-se
completamente onde estava, acordou o compadre.
– Tião, acorde! Vamo embora,
home!
Tião abriu os olhos e percebeu que tinham se metido em uma grande
encrenca.
O resto da história: Olavo não entrou em detalhes de como saíram
apenas de cuecas e voltaram a São Paulo, e nem de como a viatura daquele
departamento foi resgatada. Disse apenas que foi aberto um processo
administrativo, examinado por um médico, e veio o diagnóstico: “Transtornos
psiquiátricos”. Foi afastado do serviço e passou alguns meses em uma clínica
psiquiátrica.
Olavo voltou a ser motorista, agora de ambulância de um hospital
público. Mas isso é outra história.
O retorno de Olavo.
No período em que ficou internado na clínica psiquiátrica, Olavo
observou as ambulâncias que transitavam e pensou: “Um dia ainda vou dirigir uma
dessas!”.
Com a interferência de um político, Olavo conseguiu o almejado cargo.
Agora era motorista de ambulância. Achava que assim estaria desempenhando
melhor suas funções. Mas o que gostava mesmo era de acionar a sirene e passar
entre os veículos que se afastavam para dar-lhe caminho, conforme manda a lei
de trânsito. Consciente de que corria contra o relógio, levando algum paciente
em estado grave, ele logo se habituou a essa nova atividade. Exercia-a com
orgulho.
Algumas vezes permanecia com o veículo estacionado em frente ao
hospital, de plantão.
Em uma dessas ocasiões, apareceu José Pimenta, proprietário de uma
chácara em Suzano, município próximo a São Paulo. Ele tinha um problemão. A sua
mulher andava com umas dores no ventre e sem saber a quem procurar, viu Olavo
encostado na ambulância. Logo imaginou que ali estava o homem que iria
ajudá-lo. E de fato isso ocorreu. O hospital era público, Olavo conhecia todos
os médicos, “encaixou” a paciente em uma consulta. O diagnóstico foi uma
intervenção cirúrgica, bem sucedida. Extremamente grato, Zé Pimenta, como era
mais conhecido, disse a Olavo:
– Vou engordar dois porquinhos e, no Natal, o senhor vai buscar em
Suzano!
No início de dezembro, Olavo foi avisado de que os porquinhos estavam
à sua disposição.
Um grande problema: como ele iria buscar? Após matutar muito, tomou a
decisão. Comunicou a Alcides, seu superior:
– Chefe, hoje vou até Suzano com a ambulância!
Alcides sabia que não tinha outra saída a não ser concordar.
Animado por ir até uma área rural, Olavo entrou no clima. Logo na ida,
parou em um boteco e tomou uma talagada de cachaça. E, de boteco em boteco,
chegou a Suzano. Numa animação só. Lá encontrou Zé Pimenta e Dona Vilma,
totalmente restabelecida, com muita saúde. A alegria era a tônica desse
reencontro. O Natal que se aproximava deixava tudo em clima de festas.
Confraternizaram-se com algumas doses de caninha que Zé Pimenta tinha como
reserva pessoal. Hora de voltar. O coração do chacareiro era generoso.
Colocaram na ambulância três porcos e algumas galinhas. Abraços de despedida e
pé na estrada. Olavo voltava radiante. Enquanto isso seus “pacientes” estavam
em desespero com a movimentação da ambulância.
Ao chegar, ao final da tarde, na Avenida Celso Garcia, o trânsito
estava pesado, não andava. Foi quando Olavo decidiu usar sua poderosa sirene.
Como um Moisés do asfalto viu a passagem abrir-se a sua frente.
Imprimiu maior velocidade. Esse conjunto de ações levou seus
“pacientes” ao limite de tensão.
Tudo ia muito bem, passava em sinais fechados, a prioridade era para
aquele veículo de emergências. Pedro Augusto, dirigindo um automóvel Opala, não
percebeu que a ambulância vinha pela Avenida Celso Garcia com grande
velocidade. O choque foi inevitável. Os danos materiais foram enormes.
Inexplicavelmente nada aconteceu aos motoristas. O soldado José Siqueira estava
a serviço naquela esquina quando ocorreu o acidente. Treinado para atender
emergências, imediatamente foi socorrer o paciente. Estupefato, ao abrir a
porta traseira da ambulância, viu três suínos virem em sua direção e seguirem
pela via pública em desabalada carreira. As galináceas em total desespero
seguiam em um cortejo inusitado. Boquiaberta, uma multidão contemplava o
espetáculo. Olavo sofria a frustração de ficar sem um Natal gordo. Afastado por
mais um período, voltou a trabalhar na repartição, agora bem perto da temida
Dona Deolinda, em seu calcanhar. Ali o máximo que poderia fazer era trocar as
pastas de arquivo de lugar.
A narrativa de Olavo deixou seus ouvintes entretidos por pelo menos
uma meia hora. O expediente tinha chegado ao fim. Alguns o consideravam um
desequilibrado, outros o viam como um ser determinado a não seguir o sistema
com suas regras duras e inflexíveis. Um semi-herói.
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