Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
Numa das últimas vezes que estive em Salvador, conversei longamente com um grande amigo que é, também, um grande educador, o Prof. Edivaldo Boaventura (fundador e ex-reitor da Universidade do Estado da Bahia, diretor do jornal “A Tarde”, criador do Parque Estadual de Canudos e ex-secretário da Educação do seu Estado) e lhe perguntei como ele traduziria, para o português, a palavra Paideia. Como bom ex-aluno da Companhia de Jesus, ele, de acordo com o velho costume dos jesuítas, respondeu à minha pergunta com outra pergunta: “− Traduzir, para quê?”
De fato, como ele discorreu em seguida, esse é um conceito quase intraduzível. Podemos conseguir, em outras línguas, palavras que nos permitam nos aproximarmos do conceito de paideia, mas não encontraremos nenhuma palavra que nos traduza, singelamente, todo o rico e abrangente significado da paideia grega.
A idéia fundamental da paideia era a educação, mas uma educação entendida num sentido muito amplo e, paradoxalmente, muito específico. Paideia vem de uma palavra (PAIDOS, ou PEDOS) que significa menino, criança. Paideia era, pois, uma educação de ou para meninos.
A noção de paideia era profundamente ligada à de aretés, que significa virtude. A paideia era, pois, um auto-aperfeiçoamento, pela via do autoconhecimento. O autoconhecimento era o caminho adequado para a aquisição das virtudes. Daí o velho conselho do “Conhece-te a ti mesmo”, que nos chegou pelos romanos, em latim, como NOSCE TEIPSUM ou SCITO TEIPSUM.
Era, porém, um “conhece-te a ti mesmo” enquanto grego, enquanto membro do grupo humano muito amplo dos partícipes (exprimamo-nos em termos modernos) do "greek way of life".
Pois bem, o que era esse conjunto de modos de ser, de pensar e de sentir que caracterizava os gregos, que fazia com que os habitantes da Hélade, provenientes de pelo menos quatro origens diversas, se considerassem um todo psico-sociológico?
Aqui entra o elemento de Homero − o primeiro dos quatro grandes personagens invocados no título deste artigo.
As duas epopéias homéricas condensaram todos os valores e todos os modelos humanos que inspiraram a cultura grega antiga e − como pretendo expor mais adiante − mais do que isso, mais tarde haveriam de fixar, conjugadamente com a tradição do pensamento judaico-cristão, as bases do pensamento de todos os tempos, senão da Humanidade inteira, pelo menos do mundo ocidental.
Nos primeiros tempos, os gregos antigos não tinham escrita, de modo que as duas epopéias homéricas eram transmitidas de geração em geração por via oral, de memória, de cor. Com o surgimento e o desenvolvimento da escrita, a educação grega se fazia sobre os livros homéricos. A paideia tinha como objetivo preparar os jovens para ler e escrever os textos homéricos, e, por esse meio, ler e entender a origem e a especificidade do povo grego. Em outras palavras, não só para se autoconhecerem, mas para se autoconhecerem enquanto gregos.
Essa é uma idéia muito importante para se compreender a especificidade da paideia. Era em ordem à inserção dos indivíduos no universo cultural e psicológico da sociedade grega que se desenvolviam os indivíduos. O aperfeiçoamento individual se ordenava, pois, ao interesse coletivo, para o bem comum, para o interesse e o serviço daquilo que, muito imperfeitamente, se poderia designar como Estado. E, dadas as variações das várias póleis gregas, o modo de entender esse serviço também variava. No caso de Esparta, por exemplo, a vocação militar era muito assinalada e envolvia ambos os sexos. Em Atenas, já era bem diferente, e assim por diante.
Outra idéia muito presente no universo mental grego é que, se o conhecimento é o caminho para o aperfeiçoamento e a vida, o esquecimento é o caminho para a morte.
Verdade, em grego, era a-leteia, ou seja, não esquecer. Na mitologia grega, o rio Lethe, ou Estiges, era atravessado pelos mortos para chegar ao Hades, ou Tártaro, o reino da morte, do esquecimento, imperfeitamente traduzido por inferno. Os mortos, ao atravessarem o rio Lethe na famosa barca de Caronte, bebiam das águas do rio Lethes e esqueciam de seu passado, de sua vida, e tinham, assim, uma segunda morte. Se a primeira morte libertava seu espírito, ou sua alma, dos laços da carne, a segunda, mais radical e irremediável, o libertava de sua memória, de seu passado. Daí serem os mortos chamados, por Homero, de cabeças vazias.
Um ponto muito importante a destacar: na concepção grega clássica, os jovens deviam ser aperfeiçoados, sim, mas não eram todos os jovens, apenas alguns que deviam sê-lo.
Mesmo na concepção formalmente igualitária da República de Platão, a idéia da desigualdade de condições dos homens estava profundamente enraizada. Assim, quando se falava em paideia para educar, aperfeiçoar etc., entendia-se que isso era para os aristocratas. E a palavra aristocrata tem sua raiz exatamente em aretés. Aristocratas eram os melhores, os mais virtuosos, aqueles que eram gregos a um título muito especial. Eram, por assim dizer, os mais gregos de entre os gregos.
Essa idéia, de que a função primordial da educação era destacar e preparar os melhores dentre os melhores, em linhas gerais informou (no sentido filosófico, isto é, de dar forma a uma matéria informe preexistente) toda a educação em todos os tempos. Somente muito recentemente o critério da educação passou a ser estritamente igualitário.
No Brasil, concretamente, foi só com os governos do regime militar, que aplicaram a malfadada Lei de Diretrizes e Bases já esboçada no regime João Goulart, que se alterou profundamente o sistema consagrado. A partir daí, no altar da Igualdade, sacrificou-se a Qualidade. Multiplicaram-se as escolas, as faculdades, os doutores, os títulos, os “depromados” e chegamos ao momento atual. Até os anos 60, em linhas gerais, as escolas públicas eram poucas, mas ministravam um ensino de bom nível. Desde a LDB, as escolas se multiplicaram, as faculdades, idem, mas o ensino, para combater o “elitismo”, foi cada vez mais sendo massificado e, como decorrência, cada vez mais se foi abrindo um fosso intransponível entre o ensino privado (sucedâneo imperfeito do velho ensino aristocrático de outrora) e o ensino público − sucateado, humilhado, descaracterizado. Para implantar a igualdade, acentuou-se a mais cruel e intransponível das barreiras, a das castas culturais...
Platão, Sócrates e Aristóteles, cada qual a seu modo, foram os três filósofos máximos da Grécia Antiga e, também, de toda a Humanidade, em todos os tempos. Eles se abeberaram dos elementos da paideia, desenvolveram-nos, sistematizaram-nos, teorizaram-nos, fixaram suas formas definitivas aplicáveis a todos os tempos. E ainda hoje, milênios decorridos, é sempre nos três grandes mestres gregos que vamos encontrar luzes para resolver a maior parte dos problemas profundos que afligem a Humanidade.
Sócrates, como é bem sabido, foi mestre de Platão, que o foi de Aristóteles. Sócrates nada deixou escrito, mas Platão, seu genial discípulo, divulgou suas idéias, seu modo de pensar, especialmente sua dialética, seu sistema de interrogar, sempre permeado de ironia, de ir fazendo com que o interlocutor descubra, por si mesmo, o que pensa, como pensa, em que medida pensa etc. Ou, pelo contrário, ir fazendo com que entre em contradição e acabe reconhecendo seus erros. É o famoso parto das idéias, a maiêutica, característica do pensamento socrático.
Lembro bem qual foi meu primeiro contato com o “pensamento socrático”...
Tive, no velho Ginásio dos tempos antigos, um colega que era terrível na sua dialética. Ele era loirinho e miudinho, lembrava um pouco o Calvin das histórias em quadrinhos. Ele tinha o costume de “inocentemente” ir fazendo perguntas “ingênuas” aos professores, ia perguntando, perguntando, sempre com jeitinho de quem estava querendo aprender. E o professor ia respondendo, respondendo, habilmente conduzido por aquele maquiavelzinho quase de calças curtas... E quando o venerando e pomposo professor catedrático (naqueles tempos, em escolas públicas, os professores de ginásio defendiam tese e se tornavam catedráticos!) estava empolgado e bem entalado, o meu coleguinha “puxava o tapete” e, para grande alegria da classe inteira, o professor caía feio no chão. O menino o havia levado para uma contradição sem saída...
Os professores tinham pavor dele e comentavam sempre que possuía “um espírito socrático”. Nós todos éramos muito crianças e ainda não sabíamos bem quem era esse tal de Sócrates, mas ficávamos encantados com ele, filósofo que tinha a grande genialidade de ensinar os alunos a dar banhos em professores vazios e convencidos...
Esse foi meu primeiro contato com o velho Sócrates...
Não se sabe até que ponto Platão foi estritamente fiel, ao divulgar o pensamento de Sócrates, até que ponto o reinterpretou e lhe incutiu sua marca pessoal.
Quanto a Platão − mais generalista, idealista, utópico − e seu discípulo Aristóteles − mais específico, sistemático, empírico e cientificista − ambos marcaram as duas vertentes do pensamento humano.
Um fato para mostrar bem as diferenças entre os dois: Platão escreveu a República, tratado teórico sobre como deveria ser uma sociedade ideal. É utópico, mas é utilíssimo e teve importância fundamental para o desenvolvimento da Ciência política.
O mesmo problema, colocado diante de Aristóteles, teve solução radicalmente diversa. Aristóteles era prático, era empírico... e dispunha de verbas mais ou menos inesgotáveis do seu rico protetor Filipe da Macedônia.
Enviou, então, emissários a todas as partes do mundo conhecido, com a missão de elaborarem relatórios exaustivos sobre como todos os povos se organizavam e governavam. Ao cabo de anos de pesquisas, reuniu mais de 200 relatórios. Estudou, então, todos eles e, a partir desses estudos de caso, elaborou sua Política, sobre as formas de governo.
Platão foi direto à teoria e sistematizou um regime ideal, embora sabendo-o irrealizável. Aristóteles partiu do real e chegou à teoria da melhor forma de governo em tese, e da melhor forma de governo possível. Esses dois caminhos seguidos indicam duas vertentes, duas variantes do espírito humano. Correspondem, também, aos dois métodos clássicos do raciocínio filosófico, o indutivo (do específico para o genérico, do prático para o teórico) e o dedutivo (do geral para o particular, do teórico para o concreto).
Não se pode dizer, no plano axiológico, que uma dessas variantes seja superior à outra. Ambas são complementares, ambas se alternam ao longo dos tempos, às vezes nas mesmas pessoas. E ambas se abeberam em Sócrates e, mais remotamente, na paideia homérica.
Sem Homero, não teria havido Sócrates. Sem Sócrates, não teria havido nem Platão nem Aristóteles. Mas sem Platão e Aristóteles, talvez Sócrates fosse lembrado apenas como mais um dos obscuros sofistas de seu tempo. A tríade é inseparável. São, sem a menor dúvida, os três maiores cérebros da Antiguidade. Sem essa tríade, talvez Homero fosse mais um dos incontáveis autores mitológicos esquecidos de todos. Foi a tríade que fez com que o gênio de Homero fosse reconhecido e admirado em todos os tempos.
Séculos depois dos três grandes gregos, já na Era Cristã, foi remotamente discípulo de Platão o neo-platônico Santo Agostinho, dando origem a uma ampla escola de pensamento católico que teve inúmeros seguidores. Talvez o mais célebre e importante deles tenha sido São Boaventura (século XIII).
Aristóteles teve suas idéias relançadas e aperfeiçoadas por São Tomás de Aquino, contemporâneo e amigo de São Boaventura. A filosofia aristotélico-tomista ainda hoje tem numerosos seguidores e marcou profundamente todo o pensamento humano.
Resumindo e condensando estas longas divagações, digo, pois, pontualmente: Homero in-formou a paideia grega, que produziu os três grandes filósofos, que, por sua vez sistematizaram e teorizaram a paideia na sua forma suprema e definitiva. E ela chegou até nós, permanecendo, queiramos ou não, bem viva e atuante.
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