Elda Nympha Cobra Silveira Cadeira n° 21 - Patrono: José Ferraz de Almeida Junior |
Ele era o mais amigo, o mais sincero amigo de
todos os que já tive. Tomávamos muita caipirinha juntos, nos botecos sem nome
da vida. E batíamos longos papos, filosofando sobre a miséria, sobre o mundo e
os rumos da arte, tão desprestigiada em nossos tempos. Se ele estivesse vivo,
com certeza, seria um dos escolhidos para decorar o muro do cemitério, com sua
arte colorida, ressaltada de sentimentos e de grande solidão. A solidão que
juntos repartíamos. A solidão de sermos duas pessoas diferentes num só corpo.
Uma pessoa fadada a ser genial e a ter o seu dom marcado para sempre nas telas
do universo, e a outra fadada a sofrer os revezes da vida, a miséria e o
preconceito, a indiferença e o desprezo dos artistas mais afamados.
Mas ele, na sua finitude pessoal, no seu desespero
cotidiano, era na sua pobreza, na miséria que o rondava, maior que os de
renome, majestoso frente à majestade dos poderosos. Grande, imenso na sua
humildade negra.
E foi por isso que convivi com ele até a sua morte
precoce, sentida, sofrida e inútil.
Pela sua cor escura sempre foi execrado do
convívio social, da elite de que fazem parte muitas vezes os que pouco têm para
dar, mas lutam para se sobressair pisando naqueles que verdadeiramente têm seus
próprios méritos e talentos.
Certo dia, estando juntos num enterro e andando
pelas ruas do cemitério, com passadas contidas pelo féretro, ele foi destilando
sua amargura:
– Tempos atrás nem aqui eu poderia ser enterrado,
se fosse no tempo da escravatura. Perceba como as pessoas se afastam de mim,
mesmo sendo do mesmo nível intelectual e talento artístico. Não é só a cor, mas
também a pobreza. Elas são divisoras de águas numa sociedade.
E lágrimas rolaram pelo seu rosto destacando-se na
pele escura, era um misto de sofrimento pela perda de um amigo e pela sua
desdita, pela sua incapacidade de ser aceito por uma sociedade elitista.
Todos podem dizer que a morte é oportuna, digna e
necessária, mas eu digo que ela é uma passagem sofrida, absurda e amarga. E
quando entro num cemitério e vejo tanta ostentação, tanta ânsia de engrandecer
os mortos, num culto mórbido e doentio, fico pensando se vale mesmo a pena
cultuar alguém depois que morre elevando-o com honrarias e homenagens, se ele
foi tão vilipendiado, humilhado e ofendido quando vivo.
Mas esse
amigo não sabe, ou melhor pode até estar vendo, que nesse cemitério mandei
colocar sobre seu túmulo a escultura que ele havia esculpido, onde um anjo
negro carrega uma criança branca.
Bem, mas como
a vida é cheia de mistérios, aquela escultura beirando a guia da calçada,
começou a atrair todos que passavam. O olhar daquele anjo negro direcionado
para aquela criança em seus braços, diferia dos demais anjos da necrópole,
traduzia um infinito amor, despojado de preconceitos onde o pleno amor
altruísta se manifestava naquele velar constante pela criança desfalecida em
seus braços.
Grandes
mestres das artes sentiram toda a força do talento extravasar daquele mármore
frio mas esculpido com tanto carinho, parecendo até que foi aquecido por mãos
hábeis.
Seu nome
agora reconhecido foi catalogado como um gênio do cinzel e das telas. Ficaram
sabendo que durante dias e noites o escultor se esfalfou com grande sacrifício,
numa ânsia sempre crescente, para vê-lo terminado. Parecia que tinha urgência,
e tinha mesmo, pois logo após vê-lo pronto, esgotado pelo cansaço deu por
terminados também seus dias.
Na ocasião de
sua morte, não houve choro nem vela, somente eu e alguns vizinhos fizemos seu
enterro. Sempre o achei um homem solitário, mas ali, sozinho no caixão com as
mão calejadas cruzadas no peito, dentro de uma sala vazia, tive noção do que é
a solidão, a indiferença, o ostracismo angustiante de se sentir desprezado, um
pária na vida. O anjo negro de olhar pungente continua a atrair o povo do
lugar, que nunca deixou de sentir a empatia daquele olhar e não se cansa de
pedir graças para a saúde das crianças adoentadas. Deus em sua grande
misericórdia deu-lhe notoriedade após a morte.
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