Samuel
Pfromm Netto (1932-2012)
Armando Alexandre dos
Santos (*)
Na última semana, o Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo perdeu dois de seus mais eminentes membros: no dia 17, faleceu o
piracicabano Samuel Pfromm Netto (1932-2012) , e no dia 22 deixava-nos o
botucatuense Hernâni Donato (1922-2012). A ausência de ambos é, literalmente,
irreparável, porque homens da cultura e do descortino de Hernâni e Samuel não
aparecem com frequência, ainda mais em tempos de decadência cultural como o
nosso. Eram verdadeiros ícones da Cultura Paulista.
Já há poucos meses, outro destacado membro que
honrava as fileiras do IHGSP havia falecido. Refiro-me a D. Antônio Maria
Mucciolo, arcebispo emérito de Botucatu e diretor da Rede Vida de Televisão.
Aos três sou, pessoalmente, devedor, porque cada um deles teve a gentileza de
prefaciar um livro meu.
Pretendo hoje recordar alguns pontos que me ocorrem,
relativos a Samuel. Conheci-o há perto de 20 anos, quando ingressei no IHGSP.
Desde logo fiquei cativado por sua personalidade pujante, sua cultura, sua
extrema amabilidade. Nós, os mais jovens do Instituto, tínhamos por ele enorme
respeito, pois conhecíamos seu currículo brilhante, desde professor primário
até livre-docente, desde modesto jornalista
na Piracicaba ainda provinciana da meados do século XX, até professor emérito
de Psicologia Educacional, na USP, autor de obras de peso e referência
internacional na sua especialidade.
Mas ele não nos intimidava, mostrando-se, pelo
contrário, acessível. Quando conversava com os mais jovens, longe de adotar uma
postura professoral (que seria, aliás, mais do que justificada), sabia
adaptar-se, acamaradar-se, gostava de ouvir, estimulando os melhores lados do
interlocutor. Era cultíssimo, tinha um conhecimento profundo da História e da
Literatura dos vários povos, de modo que, nas conversas, com naturalidade
entremeava observações argutas, comentários inteligentes, recordações de
leituras ou viagens muito adequadas ao momento. Era, ao mesmo tempo,
atualizado, acompanhando com interesse as novidades em todos os ramos do saber.
Conversar com Samuel era aprender, era penetrar num mundo encantado de cultura
e bom gosto.
Tinha, ainda, seus hobbies, seus “estudos paralelos”, conhecendo em profundidade
cinema, história em quadrinhos e música popular brasileira. Tudo isso o
aparelhava de modo excelente para, nas conversas ou aulas, soltar observações
engraçadas, sutis, cheias de verve. Era capaz de, numa conferência, referir-se
a um personagem de romance, a uma peça de teatro, citar um ditado popular,
cantar um trecho de uma música, tudo isso com naturalidade, encantando os que o
ouviam.
Era um grande orador, dos melhores que conheci,
comunicador nato, professor até a medula dos ossos.
Mais tarde, já em 2001, tive ocasião de estreitar
relações com ele e com sua esposa, D. Olga, quando o entrevistei para o jornal
“São Paulo em foco”, do qual era diretor.
Falei de D. Olga. É impossível recordar Samuel sem
falar dela. A fidelíssima companheira de mais de 50 anos de matrimônio,
contou-me, no velório, que poucos dias antes do falecimento, com Samuel já
muito doente e abatido, ela, que no quarto do hospital procurava distrair-se e
distender-se um pouco fazendo palavras cruzadas, perguntou-lhe alguma coisa,
referente à história de Roma Antiga. Era um nome qualquer de um imperador, com
determinado número de letras, que precisava colocar no papel.
Evidentemente, D. Olga quis, com a pergunta,
estimular um pouco o intelecto combalido do esposo, animando-o. Mas, gracejou:
- Samuel, quero só saber a palavra, não precisa me dar
uma aula.
Mas o velho professor, estimulado, não se contentou
em dar a resposta... sentiu necessidade de explicá-la. E dali brotou uma
conversa que tomou a manhã inteira, percorrendo com sua memória e recordando
com vivacidade toda a história da antiga Roma, desde a lendária fundação, com
Rômulo e Remo, até a Antiguidade Tardia, já no despontar da Idade Média. Vendo
que o marido se animara, D. Olga, jeitosamente, deu corda, foi fazendo perguntas,
incentivou-o a falar. E ele falou... Tudo repassou, os reis, a república, o
consulado, o principado, o império, o surgimento do Cristianismo, a crescente
influência dos bárbaros que, afinal, destruíram o Império. Foram três ou quatro
horas de conversação...
Por trás de todo grande homem, costuma-se dizer,
existe uma grande mulher. D. Olga é a grande dama que acompanhou Samuel em sua
vida. Dotada ela também de notável inteligência e cultura – especialmente na
área de Letras – foi a companheira e interlocutora ideal de toda uma vida
dedicada ao pensamento, ao ensino, à cultura.
Conheceram-se ambos aqui à porta do meu prédio, na
Rua São José, defronte ao antigo Cinema Broadway. Samuel era, então, um jovem
professor, diplomado pelo antigo Curso Normal, e trabalhava como jornalista no
Jornal de Piracicaba, redigindo a crítica cinematográfica. A jovem Olga viu o
jovem Samuel, gostou dele e dali nasceu um romance que se manteve por mais de
meio século.
Piracicabano estabelecido em São Paulo, Samuel nunca
esqueceu sua terra natal. Aqui vinha com frequência, sonhava retornar para cá.
Ainda poucos meses antes de falecer, pediu-me que lhe procurasse um apartamento
pequeno, aqui no centro da cidade. Queria ter um “pied-à-terre” aqui, que não
ficasse longe nem da Praça José Bonifácio nem do rio Piracicaba. Queria poder
ir a pé aos velhos e saudosos locais em que passara a infância...
Para cá realmente
retornou, mas infelizmente num dia muito triste para todos nós que o
estimávamos e admirávamos. Veio para o sepulcro dos Pfromm, no Cemitério da
Saudade. Pouco tempo antes, dissera-me que havia tomado todas as providências
para seu sepultamento. Não queria ser cremado, mas sepultado, de acordo com o
velho costume católico, junto dos seus, na sepultura familiar. E como católico
morreu, confortado com os sacramentos da Igreja. No mesmo dia do seu enterro,
na missa dominical das 19 horas, celebrada em rito oriental maronita, Mons.
Jamil (que era amigo de Samuel e seu confrade no IHGSP), recordou sua figura e
sufragou sua alma. Deus tenha a alma desse grande amigo, desse grande mestre,
desse grande piracicabano.
Deve sair em breve, como obra póstuma de Samuel, o Dicionário de Piracicabanos Ilustres.
Empenhou-se nesse livro monumental por anos a fio e queria vê-lo publicado em
vida. Acompanhei-o em alguns dos lances que deu, na infrutífera tentativa de
conseguir patrocínio para a publicação. Mas somente depois de sua morte virá a
lume, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, agora sob a
direção segura de nosso amigo Vitor Vencovsky. Será a primeira obra póstuma de
Samuel Pfromm Netto. Acredito que, em seus papéis de estudo e pesquisa, outras
obras ainda estejam esperando pela luz da publicidade. Sim, era fecundo, era
fecundíssimo, meu amigo Samuel, com sua cultura polimorfa e multifacetada.
(*) Armando Alexandre dos Santos é
historiador, jornalista e diretor da Revista da Academia Piracicabana de
Letras.
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