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sexta-feira, 19 de maio de 2017

O relógio de minha avó


O relógio de minha avó
Ivana Maria França de Negri

.Reencontrei-o muito deteriorado, com a caixa consumida por cupins, ponteiros fora de lugar, vidros quebrados e faltando a chave de corda.
Fiquei triste porque pertenceu aos meus avós maternos que se casaram no início do século passado.
Não podia simplesmente jogá-lo fora... Fazia parte de toda uma saga familiar de imigrantes italianos que vieram de navio para o Brasil.
Não me recordo desse relógio na casa de minha avó, pois eu era muito pequena, mas lembro-me dele já na casa de minha mãe, que o herdou de seus pais quando ambos  faleceram. Ficava num lugar privilegiado da sala de jantar, onde presenciou almoços festivos, jantares de Natal, aniversários, bodas,  batizados e outras comemorações.        
E fico imaginando-o na parede da casa da Governador, residência de meus avós, que ficava entre as ruas XV e Rangel. O teto bem alto como era usual nas casas antigas, e ele marcando o tempo numa época em que não havia computadores, artigos eletrônicos, telefones e nem televisores. Os relógios eram peças essenciais. Elegantes, mas barulhentos, badalavam a cada quinze minutos alguns, a cada hora outros. Testemunhos de alegrias, tristezas, nascimentos e partidas. Quantas crianças cresceram sob a marcação do tic-tac dos segundos, minutos e horas desse relógio.
Posso sentir os olhos azuis de minha avó grávida, olhando de quando em quando para seus ponteiros, enquanto bordava o enxoval, contando o tempo para o nascimento de suas crianças, treze no total, dez que vingaram. Os partos, feitos em casa mesmo, com auxílio de parteiras.
Imagino-a suspirando, sob a cadência do pêndulo, quando os filhos, já moços, demoravam para chegar, quando viajavam de trem e tudo era longe e difícil.
Quantos segredos  ele presenciou? Se pudesse falar, quantas histórias teria para contar? O pêndulo em seu vai e vem ininterrupto avisando que era hora de dormir, hora de acordar, hora de brincar, hora de cuidar da horta, hora de comer. De quantas intimidades foi testemunha muda, abraços, carinhos, beijos, sermões quando os filhos faziam algo repreensível, natais e aniversários.
Antigamente os relógios eram peças fundamentais numa casa,  verdadeiras obras de arte, muitos artesanais, entalhados à mão,  a maioria de fabricação inglesa, duravam uma vida inteira, passando de geração em geração. Exerciam um fascínio irresistível nas pessoas por serem os marcadores do tempo,  essa incógnita.
Hoje, relógios são descartáveis. Parou, jogou. Pra que consertar se um novo fica mais barato? Peças de plástico, quebrando à toa, tudo vindo da China, neste mundo virtual dependente cada vez mais das tecnologias, de internet e da energia elétrica. Geramos toneladas de lixo. Nada mais tem valor. Não tenho bola de cristal para saber o que virá no futuro. Pessoas se reúnem em grupos de sites, de whatsapp, tudo  virtual. Não há mais troca de abraços, de sorrisos, de calor e energia física.
Encontrei um bom relojoeiro e um artesão habilidoso, que restauraram o mecanismo e a caixa de madeira.
Relógios sempre fizeram parte da magia infantil. O do castelo que badalava à meia noite  quebrando o encanto da Cinderela, o relógio do Coelho Branco da Alice,  e o carrilhão onde se escondia do lobo o cabrito esperto da história dos sete cabritinhos.
E esse contador do tempo,  que veio de tão longe de navio, embalado pelos sonhos de minha avó, continuará sua tarefa silenciosa de marcar o tempo de minha família, espargindo a energia boa dos ancestrais que certamente velam por nós.


(Texto publicado na Gazeta de Piracicaba)


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