Cadeira n° 24 - Patrona: Maria Cecília Machado Bonachella
Crônica de Maria Cecília
Maria Cecília Machado Bonachella − minha sobrinha, filha de meu irmão mais velho, José Luiz, e Maria Lavínia Sardinha, naturais de São Simão, SP, a quem escolhi Patrona de minha cadeira número 24, da Academia Piracicabana de Letras, nesta segunda fase de atividades − nasceu em Franca, em 16 de outubro de 1940. Seus pais tinham viajado em visita a parentes, àquela época residentes na chamada “Franca do Imperador”, bela cidade paulista, quase divisa de Minas Gerais. Ali ela veio ao mundo, embora toda sua infância tenha transcorrido em São Simão, onde fez os primeiros estudos escolares. Terceira filha de seis irmãos, a família mudou-se para Piracicaba quando ela estava com onze anos, e aqui radicou-se para sempre. Fez o ginásio e se formou para o magistério, no Colégio Assunção; a saúde delicada não lhe permitiu altos voos nos estudos. Um reumatismo articular agudo, adquirido muito cedo, trouxe-lhe em consequência uma lesão cardíaca, com a qual conviveu durante toda a vida. E foi, sem dúvida, a limitação física, o fator decisivo que levou a menina, desenganada pelos especialistas, a uma vida introspectiva mais acentuada, voltada para o sentimento do transitório, onde prevaleceu o misticismo, e à inclinação poética.
Em sua história houve sempre um fator decisivo a ligar a vida àquele arcabouço mais sutil da alma, onde se teceram as filigranas de uma sensibilidade invulgar, tocada de nostalgia, que se derramaria por toda a produção artística.
Desde cedo, o interesse pelos livros e os poetas acentuou-se, auxiliado pelos pais, cultos e amantes da boa leitura, que descobriram seu talento precoce e o estimularam, na condução dos clássicos da literatura, na redação, e no aprimoramento da língua. Uma forma inteligente de desviar a criança dos espectros de uma previsão médica, segundo a qual não chegaria aos 20 anos, o que, felizmente, não ocorreu.
Contrariando esta previsão, casou-se com Nelson Bonachella, deu à luz três filhos, duas mulheres e um homem: Maria Beatriz, Nelson e Maria Cecília, amamentou-os e os criou, condu¬zindo-os na formação e participando de suas experiências, tendo ainda convivido com o casal de netos, filhos do casamento da caçula que tem seu nome. Sob uma aparência de fragilidade, escondia-se a grande força interior que caracterizou toda a sua trajetória humana. Sua atividade física e intelectual sempre foi ininterrupta (salvo nas fases mais críticas da saúde), tanto nos afazeres domésticos e na dedicação à família, como nas várias atividades culturais, criando e presidindo dois clubes literários, Clip (Centro Literário de Piracicaba) e Golp (Grupo Oficina Literária de Piracicaba), além da coordenação da página literária “Palavras & Versos”, do Jornal de Piracicaba, durante algumas décadas, por meio da qual incentivou, conduziu e promoveu expressivo número de poetas e de escritores. De maneira natural e espontânea, ela partilhava com os colegas o conhecimento e o traquejo adquiridos, sem imposição ou arrogância, mesmo quando necessária a correção, o que também fazia na revisão de obras em prosa e verso a serem publicadas. Foram muitas essas solicitações.
Apesar do tempo consumido neste trabalho, muitas vezes espinhoso, a criatividade intensa não a abandonava, a julgar pelas inúmeras joias de real valor, deixadas em dois livros próprios, “Três Fases” e “Era uma vez um País”, além da participação em diversas coletâneas de poesias, feitas pelos vates daqui e de outras regiões, num período que se caracterizou pelo surgimento de muitos valores e pela criação do “Prêmio Escriba”, de prosa e poesia, até hoje em pleno desdobramento no país. Deixou também muitos poemas, publicados em jornais e revistas, além de inéditos.
Quando a morte a surpreendeu em 8 de fevereiro de 2007, com a idade de 66 anos e três meses, a escritora Ivana Maria França de Negri, outra batalhadora, assumiu sem interromper a coordenação do trabalho, agora com o nome de “Letras & Rimas”, uma página que já se incorporou como tradição no Jornal.
Cecília − a doce, frágil e forte poeta que já nasceu can¬tando e rimando seus versos, antes mesmo de conhecer a vida − “tingiu de ametista os seus sonhos de menina e, no seu coração, viu brotar as violetas com aros espirituais, antes das rosas”, para usar a feliz metáfora de seu professor e amigo, o escritor Mello Ayres, na apresentação de seu primeiro livro “Três Fases”, um relicário de belos versos.
Sempre senti por Cecília, desde o nascimento, uma certa maternidade espiritual, que se foi sedimentando com a convivência, ao lado da admiração pelo jeito delicado de ser e dos versos que compunha, de forma natural, brotados ao sabor do acaso, por obra e graça do Criador.
Ela me chamava “tia-mãe”, embora a diferença cronológica não fosse tão grande, mas sempre aceitei como justo esse tratamento. Eu sentia nessa criança algo maior, embasado em puro sentimento, algo diferente e mais sutil, todo feito de delicadeza, ternura e beleza. Algo que pode ser definido como Simplicidade, com maiúscula, um traço que sempre marcou sua poesia, que poderíamos caracterizar como a poesia da simplicidade. Sem rebuscamentos, sem outras in¬tenções, sem mesmo saber ainda o manejo e a exigência do verso, a poesia brotava de sua alma, do seu coração, como aquela sementinha, espalhada a esmo, produzindo flores. Flores mimosas e silvestres, flores delicadas e raras.
Flores pequenas que já ensaiavam os compassos da menina que substituía o brinquedo e a boneca, pelo caderno: “Para ler brincando”: “sou pequena, nada sinto, pouco vejo, nada entendo, Pequenina, Sou Menina!”
A menina que já era capaz de ver o céu e criar imagens como esta Sensualidade: “a lua se despiu sem que ninguém pedisse, para que o céu a visse e apressasse o passo. Foi então, que este céu suou gotas de estrelas pelo espaço…” Ou a menina capaz de im¬primir em seus versos aquela melancolia que seria sempre o traço dominante de sua personalidade, e que, numa premonição extraor¬dinária, derramaria nos versos esta joia reflexiva e profunda: “No fundo de mim mesma procuro o outro EU. Esta que ora vive é a que sofre. A outra − mais feliz − essa morreu...”
Assim, lembrando e relendo seus poemas, poderíamos caminhar com Cecília em todas as fases de sua vida que, nas mais diversas circunstâncias, extravasaria no verso a sua alma de artista, e escreveria a história de sua passagem nesse mundo, criando e esgrimando a palavra em jogos admiráveis de metáforas, de comparações e antíteses que talvez nem ela mesma distinguisse como pura criação, por um dom natural de percepção e de acuidade que já vinha sendo treinado desde cedo, por sólida formação humana e intelectual.
Nossa afinidade espiritual era grande, provinda das mesmas fontes e de raízes semelhantes em que o berço e a família interferiram na formação, na identidade e nas inclinações. Havia espaços para as confidências, os extravasamentos, as alegrias, os sonhos, as inquietações e os temores recíprocos.
Modesta, Cecília jamais supôs em vida que seu nome se projetaria na cidade que adotou como sua, e soube retribuir seu amor. Aqui estudou, casou e constituiu família; aqui viveu e sofreu, sonhou e versejou com enorme capacidade para amar com arrebatamento, e aquela ternura impregnada de tristeza, capaz de permanecer por momentos, horas, dias, meses, anos, e pela vida inteira. Aquele encantamento produzido pela verdadeira arte que ela soube valorizar como mulher e como artista, repetindo um de seus poetas de predileção, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”!
Em sua história houve sempre um fator decisivo a ligar a vida àquele arcabouço mais sutil da alma, onde se teceram as filigranas de uma sensibilidade invulgar, tocada de nostalgia, que se derramaria por toda a produção artística.
Desde cedo, o interesse pelos livros e os poetas acentuou-se, auxiliado pelos pais, cultos e amantes da boa leitura, que descobriram seu talento precoce e o estimularam, na condução dos clássicos da literatura, na redação, e no aprimoramento da língua. Uma forma inteligente de desviar a criança dos espectros de uma previsão médica, segundo a qual não chegaria aos 20 anos, o que, felizmente, não ocorreu.
Contrariando esta previsão, casou-se com Nelson Bonachella, deu à luz três filhos, duas mulheres e um homem: Maria Beatriz, Nelson e Maria Cecília, amamentou-os e os criou, condu¬zindo-os na formação e participando de suas experiências, tendo ainda convivido com o casal de netos, filhos do casamento da caçula que tem seu nome. Sob uma aparência de fragilidade, escondia-se a grande força interior que caracterizou toda a sua trajetória humana. Sua atividade física e intelectual sempre foi ininterrupta (salvo nas fases mais críticas da saúde), tanto nos afazeres domésticos e na dedicação à família, como nas várias atividades culturais, criando e presidindo dois clubes literários, Clip (Centro Literário de Piracicaba) e Golp (Grupo Oficina Literária de Piracicaba), além da coordenação da página literária “Palavras & Versos”, do Jornal de Piracicaba, durante algumas décadas, por meio da qual incentivou, conduziu e promoveu expressivo número de poetas e de escritores. De maneira natural e espontânea, ela partilhava com os colegas o conhecimento e o traquejo adquiridos, sem imposição ou arrogância, mesmo quando necessária a correção, o que também fazia na revisão de obras em prosa e verso a serem publicadas. Foram muitas essas solicitações.
Apesar do tempo consumido neste trabalho, muitas vezes espinhoso, a criatividade intensa não a abandonava, a julgar pelas inúmeras joias de real valor, deixadas em dois livros próprios, “Três Fases” e “Era uma vez um País”, além da participação em diversas coletâneas de poesias, feitas pelos vates daqui e de outras regiões, num período que se caracterizou pelo surgimento de muitos valores e pela criação do “Prêmio Escriba”, de prosa e poesia, até hoje em pleno desdobramento no país. Deixou também muitos poemas, publicados em jornais e revistas, além de inéditos.
Quando a morte a surpreendeu em 8 de fevereiro de 2007, com a idade de 66 anos e três meses, a escritora Ivana Maria França de Negri, outra batalhadora, assumiu sem interromper a coordenação do trabalho, agora com o nome de “Letras & Rimas”, uma página que já se incorporou como tradição no Jornal.
Cecília − a doce, frágil e forte poeta que já nasceu can¬tando e rimando seus versos, antes mesmo de conhecer a vida − “tingiu de ametista os seus sonhos de menina e, no seu coração, viu brotar as violetas com aros espirituais, antes das rosas”, para usar a feliz metáfora de seu professor e amigo, o escritor Mello Ayres, na apresentação de seu primeiro livro “Três Fases”, um relicário de belos versos.
Sempre senti por Cecília, desde o nascimento, uma certa maternidade espiritual, que se foi sedimentando com a convivência, ao lado da admiração pelo jeito delicado de ser e dos versos que compunha, de forma natural, brotados ao sabor do acaso, por obra e graça do Criador.
Ela me chamava “tia-mãe”, embora a diferença cronológica não fosse tão grande, mas sempre aceitei como justo esse tratamento. Eu sentia nessa criança algo maior, embasado em puro sentimento, algo diferente e mais sutil, todo feito de delicadeza, ternura e beleza. Algo que pode ser definido como Simplicidade, com maiúscula, um traço que sempre marcou sua poesia, que poderíamos caracterizar como a poesia da simplicidade. Sem rebuscamentos, sem outras in¬tenções, sem mesmo saber ainda o manejo e a exigência do verso, a poesia brotava de sua alma, do seu coração, como aquela sementinha, espalhada a esmo, produzindo flores. Flores mimosas e silvestres, flores delicadas e raras.
Flores pequenas que já ensaiavam os compassos da menina que substituía o brinquedo e a boneca, pelo caderno: “Para ler brincando”: “sou pequena, nada sinto, pouco vejo, nada entendo, Pequenina, Sou Menina!”
A menina que já era capaz de ver o céu e criar imagens como esta Sensualidade: “a lua se despiu sem que ninguém pedisse, para que o céu a visse e apressasse o passo. Foi então, que este céu suou gotas de estrelas pelo espaço…” Ou a menina capaz de im¬primir em seus versos aquela melancolia que seria sempre o traço dominante de sua personalidade, e que, numa premonição extraor¬dinária, derramaria nos versos esta joia reflexiva e profunda: “No fundo de mim mesma procuro o outro EU. Esta que ora vive é a que sofre. A outra − mais feliz − essa morreu...”
Assim, lembrando e relendo seus poemas, poderíamos caminhar com Cecília em todas as fases de sua vida que, nas mais diversas circunstâncias, extravasaria no verso a sua alma de artista, e escreveria a história de sua passagem nesse mundo, criando e esgrimando a palavra em jogos admiráveis de metáforas, de comparações e antíteses que talvez nem ela mesma distinguisse como pura criação, por um dom natural de percepção e de acuidade que já vinha sendo treinado desde cedo, por sólida formação humana e intelectual.
Nossa afinidade espiritual era grande, provinda das mesmas fontes e de raízes semelhantes em que o berço e a família interferiram na formação, na identidade e nas inclinações. Havia espaços para as confidências, os extravasamentos, as alegrias, os sonhos, as inquietações e os temores recíprocos.
Modesta, Cecília jamais supôs em vida que seu nome se projetaria na cidade que adotou como sua, e soube retribuir seu amor. Aqui estudou, casou e constituiu família; aqui viveu e sofreu, sonhou e versejou com enorme capacidade para amar com arrebatamento, e aquela ternura impregnada de tristeza, capaz de permanecer por momentos, horas, dias, meses, anos, e pela vida inteira. Aquele encantamento produzido pela verdadeira arte que ela soube valorizar como mulher e como artista, repetindo um de seus poetas de predileção, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”!
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