Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
─ Os Srs. escolheram uma bela ciência para estudar, a Física. Cumprimento-os pelo bom gosto, mas devo dizer-lhes que não fizeram uma boa escolha. Se quisessem ter futuro, deveriam ter escolhido alguma outra ciência que ainda pudesse progredir. Isso não acontece, infelizmente, com a nossa Física, onde tudo o que podia ser descoberto já o foi.
Um dos alunos que o ouviam era um judeuzinho alemão de nome Albert Einstein... Enquanto ouvia essa tolice proferida solenemente do alto de uma cátedra, devia estar ruminando suas idéias, porque já em 1905, ano da conclusão de seu curso, aos 26 anos de idade, publicou os célebres cinco artigos em que expôs suas teorias que revolucionariam o ensino da Física.
O mesmo Einstein, anos depois, mais amadurecido e experimentado nas lutas da vida, resumiu numa frase que se tornou célebre seu desencanto com a mentalidade errônea de quem já sabe tudo, de quem acha que nada mais há para aprender: "É mais fácil quebrar um átomo do que romper um preconceito".
Lembrei-me quase imediatamente do jovem Einstein na universidade suíça, quando me pus a pensar para redigir este artigo.
De fato, os homens do século XIX eram dogmáticos, acreditavam sinceramente estar na posse da verdade em qualquer campo. Eles, que muitas vezes negavam os dogmas religiosos, acreditavam nos dogmas da Ciência, erigida quase ao nível de uma inquestionável e intolerante religião nova. Eram positivos, metódicos, maduros, "espíritos fortes" sem feminilidades ou infantilidades.
Pela minha idade (tenho 57 anos), e pelo fato de ter convivido muito com pessoas da geração de meus tios-avós, ainda convivi, na minha infância, com muita gente nascida no século XIX. Todos, homens e mulheres, eram afirmativos em excesso, até nas coisas mais simples. Pareciam viver só de certezas, de nada tinham dúvidas ou hesitações. Não entendiam os matizes, os meios-tons, os aspectos fugidios ou camaleônicos da realidade.
Eram pessoas que acreditavam piamente no mito do progresso irrefreável da Humanidade, imaginando que, tão logo a Medicina resolvesse o problema do câncer (que na época era o grande espantalho que aterrorizava as mentes, já que um diagnóstico "daquela doença" cujo nome muitos nem ousavam pronunciar equivalia a uma sentença de morte) a expectativa de vida subiria para 120 ou 130 anos. Foram pessoas dessa geração que pagaram custosos procedimentos para serem congeladas, na esperança de, mais tarde, serem reanimadas e curadas de seus males por avanços imaginários da futura Medicina. Os Estados Unidos estão cheios de "clínicas" dessas, com cadáveres congelados há 30, 40 ou 50 anos... à espera do Juízo Final!
Desculpem-me os leitores esta longa introdução que parece nada ter a ver com o tema do artigo. É que ela me parece conveniente para se imaginar o clima psicológico dentro do qual Marc Bloch e Lucien Fèbvre começaram a publicar, em 1928, a Revue des Annales, que se tornaria famosa e haveria de revolucionar os estudos da História no mundo inteiro.
Até então, o que vigorava era o positivismo, crença de caráter cientificista, determinista e evolucionista, segundo a qual a História era um traçado linear perfeitamente pré-traçado e previsível. O próprio marxismo pagava pesado tributo a essa mentalidade, na medida em que traçava leis que supunha inelutáveis para o desenvolvimento das sociedades.
A mentalidade cientificista contagiara a Historiografia, sobrevalorizando o documento escrito, único (ou quase único) elemento considerado válido para uma análise histórica científica. “Scripta manent, verba volant” (as coisas escritas permanecem, enquanto as palavras voam), pensava-se. O admirável Fustel de Coulanges tem uma frase que é profundamente verdadeira ou profundamente falsa, dependendo da interpretação que se lhe dê: "Pas de documents, pas d'Histoire". É verdadeira, se entendermos documentos em sentido amplo, é falsa se considerarmos documentos apenas em sentido estrito, ou seja, apenas documentos escritos e oficiais.
Ora, nos primeiros anos do século passado o avanço científico abriu, em várias áreas, horizontes novos, questionando e pondo em cheque noções anteriormente admitidas como dogmáticas. Isso abriu novos desafios para a humanidade, permitindo que o próprio conceito de ciência fosse revisto, como destacou Bloch já em seus primeiros escritos.
Dada a natural influência que as ciências ─ por mais diversas que sejam as respectivas naturezas e áreas de atuação ─ exercem entre si, era compreensível que os horizontes novos abertos pela nova Física e por outros análogos avanços na Química e na Biologia, de alguma forma influenciassem as Ciências Humanas. Era natural, pois, que a História sofresse influência disso, assim como também as Ciências Sociais.
Entra aí o papel dos inovadores da École des Annales. Sua primeira luta foi contra os metódicos e os positivistas que pontificavam nas cátedras de todo o mundo. Deixando de considerar somente os fatos isolados (a famosa "histoire evénementielle") e focalizando as continuidades, as permanências, as rotinas estabelecidas; privilegiando a interdisciplinaridade, em especial com as chamadas Ciências Sociais; relacionando com coragem problemas do presente com situações análogas do passado; levantando com ousadia hipóteses explicativas (o famoso "SE", que não faz a História mas ajuda a fazê-la) ─ os intelectuais da École des Annales se transformaram em polo de referência para a renovação dos estudos históricos na França, na Europa e no mundo inteiro.
Agora, 80 anos passados, temos condições de fazer um balanço crítico de suas realizações. Vemos suas limitações (inegáveis, sem dúvida, especialmente no privilegiar tanto os aspectos meramente econômicos, pagando assim tributo ao marxismo), mas também suas admiráveis amplitude de horizontes. É justo prestarmos homenagem a esses geniais precursores. A coragem com que romperam com os preconceitos então dominantes, os coloca, talvez, na área das Ciências Humanas, no mesmo nível que atingiu um Einstein no mundo da Física.
Uma pergunta que sempre me faço é como Bloch teria evoluído, com sua poderosa inteligência e invulgar lucidez, se sua vida não tivesse sido ceifada, como o foi, em 1944, num campo de concentração nazista. Como ele teria interpretado o mundo pós-Guerra? Como ele teria visto a Guerra Fria, a divisão do mundo em dois blocos, o surgimento do Terceiro Mundo, a corrida espacial, o aparecimento da Informática e a consequente generalização da Internet? Como ele se pronunciaria pelo fracasso e colapso final do regime soviético? Que teria ele a dizer sobre a globalização e o reerguer do "perigo maometano"? Que pensaria do ecologismo? Da revolução de maio de 68 na Sorbonne, e de tantos outros fatos e fenômenos dos dias atuais?
Gosto às vezes de imaginar Bloch já centenário, mas ainda bem lúcido, ditando para uma netinha ou bisnetinha o fecho que faltou ao Ofício do Historiador, sua obra póstuma inacabada. Um pouco de imaginação, afinal, ajuda a fazer e entender a História, não acham?
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