Armando Alexandre dos Santos Cadeira n° 10 - Patrono: Brasílio Machado |
In memoriam
No meu último artigo, tive ocasião de comentar, com
os leitores da Tribuna Piracicabana, o falecimento de Samuel Pfromm Netto,
falecido no dia 17 de novembro. Cinco dias depois, outro grande intelectual
paulista nos deixou: Hernâni Donato.
Laconicamente, assim rezava a notícia divulgada pela
imprensa:
“Morreu na manhã desta quinta-feira (22), no Hospital
Sírio-Libanês, em São Paulo, o escritor, historiador, jornalista, tradutor e
roteirista Hernâni Donato. O autor será enterrado nesta
sexta-feira, às 10h, no cemitério Gethsemani, no Morumbi. Ele tinha 90 anos e
ocupava a cadeira nº 20 da Academia Paulista de Letras.”
Soube de mais pormenores por D. Nelly Donato – dama
de cultura excepcional, esposa dedicada e cooperadora intelectual da obra de
Hernâni. Três ou quatro dias antes do falecimento, Hernâni recebera, na UTI do
Hospital, a visita de seu amigo D. Fernando Figueiredo, Bispo de Santo Amaro.
D. Fernando estava saindo de viagem para Roma, mas quis visitar Hernâni, ao
qual ministrou a Unção dos Enfermos.
Hernâni era desses homens que nos habituamos a supor
que nunca morrem, não apenas no sentido metafórico e simbólico de ser um
“imortal” membro da Academia Paulista de Letras, mas porque sua vitalidade
extraordinária, sua vivacidade de espírito, seu incansável trabalho, sua
energia e seu entusiasmo contagiantes, davam-nos a ilusão de que aquele jovem
de 90 anos ainda teria um longo percurso pela frente.
Lutou durante 20 anos contra um câncer, mas isso não
o impediu de prosseguir suas atividades. Trabalhou até o fim, nunca esmoreceu.
No hospital, contou-me D. Nelly, ainda estava empenhado na redação de três
livros e comentava com seu médico que não podia morrer sem tê-los concluído.
Iniciou a vida em Botucatu, a cidade dos bons ares,
pela qual conservou sempre um carinho e um amor muito assinalados. Em Botucatu,
aliás, é considerado a justo título uma glória da cidade, é respeitadíssimo,
assim como seu antigo condiscípulo Francisco Marins, igualmente membro da
Academia Paulista de Letras. Aos 11 anos de idade, escreveram os dois um
romance infantil a quatro mãos. Cada um escrevia um capítulo, alternadamente, e
a obra chegou a ser publicada em capítulos, no clássico sistema de folhetim,
por um suplemento literário do grupo Diários Associados. Seu título: “O
Tesouro”.
Essas foram as primícias do talento dos dois
juveníssimos escritores, que tanto haveriam de brilhar nas letras paulistas.
Mais tarde, aos 19 anos, Hernâni empreendeu uma tradução da Divina Comédia,
considerada até hoje das melhores existentes para nosso idioma.
A partir daí, as produções literárias foram se
sucedendo ininterruptamente, chegando à casa dos 80 volumes publicados, nos
mais diversos gêneros: livros históricos, obras de referência, biografias,
livros infantis, novelas, romances etc.
Historiador consciencioso e bem documentado, sabia
escrever do mesmo modo atraente e cativante com que falava. Os leitores
sorviam, literalmente, seus livros, todos escritos de modo a prender a atenção
do começo ao fim. Quando vejo historiadores de formação criticarem jornalistas,
como Hernâni, que escrevem sobre temas históricos e alcançam grandes tiragens,
não posso deixar de me perguntar: por que tantos historiadores de formação não
escrevem também de modo interessante e adequado ao grande público, mas fazem
questão de produzir textos acadêmicos... que só outros acadêmicos conseguem ler
e entender?
Hernâni escrevia livros históricos e biografias que,
sem embargo do forte embasamento documental, pareciam novelas, roteiros de
cinema. Mais de um livro seu foi, aliás, objeto de adaptações para o cinema.
Profundamente brasileiro e paulista, Hernâni produziu obra de interesse
universal, o que pode ser atestado pelas inúmeras traduções que vários de seus
livros tiveram, até mesmo para idiomas pouco afins com o nosso.
Sua erudição era espantosa e de grande precisão.
Recordo certa ocasião que lhe perguntei como eram iluminadas as casas paulistas
no século XVII. “Depende – respondeu com segurança. Até certa altura desse
período, mais usada era a cera de abelha, transformada em velas. Depois,
generalizou-se o uso do óleo de baleia, também utilizado na argamassa para
construção”. E explicou que pelo exame da documentação antiga conservada no
Arquivo do Estado de São Paulo conseguira situar, de modo bastante aproximado, quando
o óleo de baleia tinha começado a servir nos candeeiros paulistas.
Outra vez, perguntei-lhe acerca da realização de
touradas, na São Paulo antiga, já que minha avó – nascida em Portugal em 1880 e
vinda para o Brasil em 1886 – se lembrava de corridas de touros no Largo dos
Curros, que depois foi transformado em Praça da República. Sem qualquer
consulta a apontamentos, Hernâni não somente falou das touradas na capital
paulista, realizadas até cerca de 1910, mas citou nominalmente várias cidades
do interior de São Paulo que mantiveram touradas até bem depois disso, nas
quais se exibiam toureiros nacionais e estrangeiros, e até me falou de uma
toureira muito famosa, que causou sensação em várias cidades paulistas pelo seu
desempenho corajoso. Revelou ainda que tinha apontamentos completos sobre o
assunto, mas nunca tivera tempo de redigir algo mais profundo a respeito.
Hernâni teve vida profissional muito intensa,
chegando aos mais altos postos do Grupo Abril e da Companhia Melhoramentos.
Trabalhou também na imprensa e em vários canais de televisão. Associativamente,
atém de membro da Academia Paulista de Letras (cuja revista dirigiu por muitos
anos, nela promovendo uma salutar atualização, com excelente projeto gráfico),
foi também duas vezes Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo. Recebeu merecidamente, desta última instituição, o título de Presidente
Perpétuo de honra.
Sua solicitude pelo Instituto era enorme.
Praticamente todas as manhãs tinha longas conversações com sua Presidente, Dra.
Nelly Martins Ferreira Candeias, pois gostava de se manter atualizado sobre os
assuntos do Instituto. Nas horas difíceis, que não foram poucas, Hernâni sempre
esteve ao lado da nossa valorosa e ativa Presidente, trocando ideias, dando
sugestões, aconselhando. Era um interlocutor ideal que Dra. Nelly sempre
apreciou e cuja colaboração soube utilizar a bem do Instituto.
Foi, ainda, um amigo muito dileto, ao qual devo,
inclusive o prefácio de meu livro de crônicas
“A porto-riquenha dentuça e horrorosa”. Todos nós sentiremos imensamente
a falta de Hernâni.
(*)
Armando Alexandre dos Santos é historiador, jornalista e diretor da Revista da Academia
Piracicabana de Letras.
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