Quais os desafios e quais as perspectivas do ensino da História, para
as novas gerações? No meu modo de entender, se focalizarmos bem os desafios, poderemos
ter uma visão, em perspectiva, do que nos espera nas próximas gerações.
O grande desafio, no momento presente, é que os jovens, neste início de
século e de milênio, parecem ter perdido a noção histórica. Tradicionalmente,
desde que o mundo é mundo, todos os seres humanos sempre se consideraram
inseridos numa cadeia humana, como elos numa corrente. Cada pessoa se via
inserida não só no espaço, geograficamente, num determinado contexto,
mas também no tempo, historicamente, numa determinada sucessão
biológica.
Essas duas dimensões humanas, tempo e espaço, eram muito claras para
todos, até mesmo em culturas muito primitivas (desculpem o conceito “antropoliticamente
incorreto”, como desculpem também o neologismo do advérbio...). Todo mundo se
sentia num lugar e inserido numa comunidade que se projetava no tempo. Isso se
manifestava de mil modos. Talvez o mais característico seja na Onomástica. Em
todas as culturas, sempre e em todos os lugares, as duas formas mais usadas
para designar um indivíduo sempre foram o local de procedência e a família da
qual procede. Eu poderia dar milhares de exemplos, mas fiquemos em uns poucos,
bíblicos: Paulo de Tarso (indivíduo Paulo, nascido em ou proveniente de Tarso);
Simão de Cirene, ou Simão Cireneu (indivíduo Simão, nascido em Cirene); Simão
Bar Jonas (Simão, filho de Jonas); Jesus de Nazaré (Jesus, proveniente de
Nazaré) etc.
No sistema clânico dos celtas, privilegia-se a noção da origem comum;
em outras culturas, a preferência vai mais para a procedência geográfica. Mas
sempre é essa dupla dimensão, tempo e espaço, que permite aos indivíduos se
identificarem e se definirem diante de si mesmos.
Daí também as duas ciências irmãs, a História e a Geografia, serem tão
interligadas. Antropologicamente, as duas se explicam e se justificam por uma
mesma necessidade psicológica inerente a todo ser humano: a necessidade de cada
indivíduo se ver e se compreender a si mesmo, inserindo-se num conjunto humano
e, ao mesmo tempo, diferenciando-se dos demais e individualizando-se.
Isso, repito, é inerente ao ser humano. Pois bem, é justamente isso que
está em crise, e em crise profunda, no momento presente.
De um lado, a noção de espaço, no mundo moderno, se tornou muito
relativa. Não só o transporte físico das pessoas foi facilitado, permitindo
deslocamentos muito rápidos, mas sobretudo o transporte psicológico ficou
instantâneo. A facilidade com que falamos hoje por telefone com qualquer parte
do mundo é incrível. E, se entramos no mundo das tecnologias de computador,
então, chegamos ao absurdamente incrível. Hoje, é possível fazer uma visita
pormenorizada ao Taj Mahal, ou às Muralhas da China, ou aos castelos do Vale do
Loire, sem sair de casa...
O mundo inteiro, tão imenso para nossos antepassados, virou uma
pequenina aldeia global. Faleceu há poucos meses uma tia minha, em Portugal,
com 96 anos, que nunca na vida tinha saído de duas pequenas aldeias, distantes
uma da outra apenas 800
metros. Ela nasceu, casou, viveu, ficou viúva e morreu
naquele pequeno mundinho. Nada mais conheceu a não ser aquilo. Isso, que hoje
estranhamos tanto, durante milênios foi o habitual da imensa maioria das
pessoas.
A relativização do espaço desorienta as pessoas, ainda que elas não se
deem conta disso. Acredito que seriam necessárias muitas gerações até a espécie
humana se adaptar convenientemente a essa transformação tão profunda nas suas
condições de existência, que afeta tanto a vida cotidiana, o modo de ver o
mundo e de cada qual se ver a si próprio.
Talvez mais ainda do que a relativização do espaço, a relativização da
noção de tempo nos afeta. Antes, as transformações eram graduais, lentas, de
geração em geração. Rupturas, sempre as houve na História, mas eram absorvidas
com relativa facilidade, pela lenta sucessão das intermináveis continuidades. O
elemento de contituidade e permanência, marcava muito mais do que o elemento
mudança. Hoje, as transformações são rapidíssimas, e cada vez mais o são. Nos
últimos 200 anos, a Humanidade mudou mais do que em milênios. E nos últimos 20
anos, mudou mais do que em séculos inteiros.
Esses verdadeiros saltos no tempo produzem, nos indivíduos, e sobretudo
nas gerações mais jovens, uma desorientação, uma insegurança, que afeta
profundamente os indivíduos e pode afetá-los psicologicamente de modo muito
acentuado. O fenômeno é recente demais para poder ser inteiramente avaliado,
mas já dá sinais de sua existência e de sua periculosidade eventual.
Hoje, há muitos adolescentes que perderam completamente a noção de tempo, a
noção de que se inserem numa cadeia humana. Muitos não conhecem nem os pais,
não têm a menor noção de quem são seus avós, não sabem de onde provêm, onde se
situam na humanidade.
Curiosamente, nestes tempos de tanta desorientação existencial
renascem, com força nova, os estudos de Genealogia. É cada vez maior o número
de pessoas que se dedicam a pesquisar seus ancestrais, talvez numa busca
subconsciente de um elemento de segurança que lhes falta na vida moderna.
O grande desafio, para nós, professores de História, é lidar com essa
realidade. Despertar, nos espíritos dos jovens, esse gosto pelo estudo do
Acontecer-Humano-ao-longo-do-Tempo (desculpem o neologismo, acho que estou
lendo demais Guimarães Rosa...), e ao mesmo tempo despertar o gosto de
sentir-se, cada indivíduo, inserido nesse processo milenar - esse é o grande
desafio.
É, também, o que permite ter alguma perspectiva futura. Como a rapidez
das transformações que vivemos é excessiva, desproporcionada com a natureza
humana, podemos contar com um poderoso elemento favorável: a necessidade
psicológica natural que, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra, se
manifestará em todos os espíritos.
Estou convencido de que essa rapidez de transformações não pode
continuar por muito tempo, sem que a humanidade inteira enlouqueça. Acredito
que, num futuro talvez não muito distante, algum fato novo de natureza
imprevisível intervenha no panorama e reequilibre o ritmo das transformações,
estabelecendo naturalmente um elemento de controle no mecanismo
rupturas-continuidades. Os franceses dizem que, quando se expulsa a natureza,
ela volta a galope. Acredito que num futuro mais próximo ou menos, a História
voltará a um ritmo mais adequado e menos vertiginoso. Essa a grande
perspectiva, a meu ver.