Antonio Carlos Fusatto
Cadeira n° 6 - Patrono: Nélio Ferraz de Arruda
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De repente... abri a janela de minha vida e deparei-me com o entardecer
de uma existência sexagenária.
No horizonte, nuvens doiradas pelo sol do dia que finda, uma brisa leve
passeia pelas folhas das árvores embalando-as suavemente, a fragrância das
flores no ar, incansáveis colibris em harmoniosa coreografia bailam de flor em
flor, sobre a relva, intensa revoada de insetos e, tendo como fundo deste
cenário, céu azul anil.
Nesse devaneio, o pensamento vagueia pelo tempo e direciona a atenção
ora para o passado ora para o presente, a alma estremece, vibra diante das
recordações, a sensibilidade é mais forte que palavras e sons; traz-me à
lembrança a piracema do caudaloso Piracicaba, cardumes de peixes tentando
transpor o Salto, como brocados enfeitando o Véu da Noiva; a velha ponte do
Mirante com passarela de madeira; a guarita do guarda da Sorocabana cheia de
cestos e jacás de bambus, construídos entre uma passagem e outra da “Maria
Fumaça”, como forma de passatempo e reforço de salário; o jardim da ponte com
suas frondosas árvores quase engolindo o coreto; as pescarias noturnas no Salto
do Piracicamirim dentro da ESALQ; as chaminés do Engenho Central, soltando
fumaças negras voluteando no ar; as cerâmicas da Rua do Porto, contrastando com
a densa mata ciliar e harmonizando-se com a Vila dos Pescadores. Ouço o
inconfundível sino do bonde, tocado pelo cobrador a cada passagem recebida, o
berrante ao longe anunciando a chegada de mais uma boiada com destino ao
matadouro, as melodias das orquestras tocando no Clube Coronel Barbosa, o som
ensurdecedor dos teares da Fábrica de Seda, na Vila Rezende, e da Fábrica
Boyes, o apito do trem chegando às 22:00 horas na Estação da Paulista, a
alegria da garotada ora brincando nas águas do cristalino Itapeva, ora jogando
futebol com bola de borracha, bolinhas de gude, rodando pião, corrida de
pega-pega; entre tantas outras brincadeiras.
As meninas brincando de roda e cantando canções folclóricas hoje quase
totalmente esquecidas, pulando corda, amarelinha, entre outras.
De repente... volto ao presente: o velho Piracicaba, qual esqueleto
leuquêmico, curvado sob o peso da poluição, carregando toneladas de resíduos.
O jardim da Ponte não mais existe, o negrume do asfalto contrastante
com a alvura das edificações, todo o verde foi engolido... E a velha “Maria
Fumaça”? O bonde? O troar das boiadas na ponte? O cheiro gostoso de garapa do
Engenho Central? O bosque da Casa do Povoador, com seu murmurante regato? Os
saraus dançantes com famosas orquestras? O encontro da boemia nas madrugadas,
no Bar Bola Sete?
Das cerâmicas da Rua do Porto, somente altivas chaminés persistem no
tempo, como dedos da natureza em riste, denunciando o homem por suas agressões
nefastas.
Ah! Que nostalgia, que poder de juventude carrega meu coração; pulsa
entusiasmo.
O tempo, na minha memória, vibra a emoção misteriosa das noites de
luar, a estender résteas de pratas pelas árvores, telhados e o rio, os acordes
de violões seresteiros nas madrugadas frias, bailes juninos nos terreiros,
muitas vezes à luz de lampiões, as brincadeiras com busca-pés e os bate-papos
até altas horas da noite.
Essas emoções ou ansiedades povoam o meu espírito, dando-me a sensação
de que vivo perenidades.
Empolgado, o arrebatamento leva-me a cantarolar meio desafinado alguns
boleros; enquanto irradima ainda mais minhas emoções.
O passado deixou saudade, nostalgia, há canções que machucam o coração,
pela poesia e ritmo das notas musicais.
Como é interessante o subjetivismo humano!
Em meu peito permanece a nostalgia de ontem, o que será amanhã?
Recomponho na mente todo o itinerário percorrido nas asas do tempo, e
sinto que, no âmago do meu ser, ainda palpita forte a juventude, ainda há um
garimpo de energias vitais.
Minh’alma é um relicário guardando inúmeros papéis, sou mais um
protagonista no belo espetáculo da vida, cujo palco é o mundo e o tempo
interminável.
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